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Um oco e um vazio
Cíntia Moscovich
Por enquanto, ela se dispunha só assim: de olhos fechados. E se abrisse os olhos e se lhe
perguntassem para onde olhava, não saberia responder decidira-se, por
fascinação, a um inicio; inclusive se havia disposto a estar somente de olhos fechados.
Tudo era partida: despira a roupa e postara-se de quatro, sobre os joelhos e sobre as
palmas das mãos, e ainda sem entender o que viria a seguir, pensou um pensamento
capaz de assombrar a precariedade que tem uma mulher nua, de quatro e de olhos fechados
pensou que se uma pessoa fizesse apenas aquilo que alcança o entendimento, não
avançaria um passo. Mas não era caso de avançar, não era caso de entender, era só
caso de dispor-se ali, à espera, nua, de quatro, olhos fechados, conforme lhe fora dito.
Conforme lhe ordenara o homem de alguma idade que se havia sentado na cadeira junto à
cama e que lhe pedira tire a roupa, não me olhe, quero lhe ver primeiro. Para não ficar
sozinha, para não ficar sem ele, obedeceu.
E então, na troca de um momento a outro, sentiu-se tocada com a polpa macia de lábios e
se contraiu num espasmo que não era ainda desejo, um espasmo que era a nascente de uma
expectativa. Na solidão escura dos olhos fechados,já não estava sozinha sobre a cama.
Nua, indefesa e sem saber das coisas adiante, transformara-se numa pessoa de intensa
espera.
Um rastro de tepidez alisou a coxa, a nádega e as costas, e a respiração morna do outro
ergueu-lhe um arrepio. Suave, o homem, agora tão irreconhecivelmente suave, o homem
filigranou as voltas de sua conformação, cioso trabalho de minúcia, demorando a boca e
língua onde ela desejava onde ela ia, aos poucos, querendo. Assim, lenta, se armou
a cobiça, feito maré montante, feito mar de braços abertos arfando num pulso de ida e
vinda. O homem falava coisas, falava; e ela entendia, entendia. Logo foi um refluxo de
queimor, e o pulmão agitava-se, e se revolvia no ventre uma força tão grande de
agudeza, que sua vontade era estar entregue como se, nua, olhos fechados, de costas
para o outro, representasse a confiança máxima, como se bastasse confiança para estar
entregue. Quero lhe ver primeiro, não me olhe, era a vontade do outro, aquele que dizia
coisas, que lhe raspava as ancas com as unhas, que lhe fustigava com os dedos cavando um
oco no meio do ventre, um buraco a ser tapado, um buraco. Ela, que não sabia, que ainda
não olhava, quis dar volta com o corpo, quis ver no rosto a quem lhe pedira, não me
olhe. Mas nada podia, olhar não podia, ver não podia, e fez na mente o rosto do homem,
esse de alguma idade, de músculos frouxos, cabelos ralos, óculos postos, que entrava na
sala de aula em alguns dias da semana, que na saída da classe de hoje, depois de apagar
as equações no quadro-negro, chamara por ela: vem comigo. Vem comigo, e ela crescera de
repente, tornando-se grande para conter a si mesma dentro da exigüidade de menina, tão
agitada, tão ansiosa, tanto de tudo o que vinha de sonhar com aquele homem, o mesmo que
agora subtraía-lhe da visão e que, dizendo coisas, a sulcava. Tentou, mas não pôde,
imaginá-lo na nudez e, forcejando, numa intensa abstração, viu-o na ardência
ardente por ela. Deu-se conta que se armara uma pose de bicho, como um bicho roçando a
carne que a mimava, como um bicho impelindo-se contra o rosto do outro, feito bicho
fermentando o desejo na pele dos dedos e na dureza das unhas do homem; era um animal
querendo a queimação. Tinha virado nisso, numa corda tensa, os músculos vibrando
sangue, os braços já quase dormentes, o ventre pedindo, os seios suspensos sobre o
travesseiro, o rosto tapado de escuridão. Ela inteirava-se de seu estado de mulher
estando com um homem, não mais um menino, um homem mesmo, de punhos duros, veias
salientes, pêlos grossos, como se fosse essa a grande generosidade do mundo. E então era
isso, como se, conforme ele dissera, conforme ele prometera desobrigara-a de
amá-lo e, sem obrigação de amor, ela podia exonerar-se do mundo e não mais precisava
estar perturbada com a piedade. Sabia que estava bem perto de ser feliz, quase ali, ao
alcance, um pouco mais, e não o olhava, porque, se olhasse, na certa acabaria por ter
laços, aqueles que estava proibida de ter. Porque, se olhasse, a mágica estaria acabada
e seriam dois infelizes naquele quarto.
De repente, sentiu a pressão e o peso sobre as costas, tudo demais para seu corpo: o
rosto afundou contra o travesseiro, as ancas levantadas, as mãos de poder retendo-lhe a
carne, atando-a, ele um ser de músculos frouxos, cabelos ralos, locupletando-se, e ela
sem poder olhá-lo no rosto, sem poder enxergar a contração da boca, os sulcos das
rugas, a boca crispada. Buscando apoio nos punhos, jogou-se com força para trás, e o
homem retribuiu o impulso com força e mais força e disse-lhe coisas, arremeteu-se ainda
com mais vigor, e ainda mais, até que ela não suportou, o corpo desistiu, estirando-se
no colchão, o rosto em atrito contra o travesseiro, os seios nos lençóis, e ele veio
junto, como se estivesse grudado, como se fosse de arrasto, como se fosse legítimo ele
negar-se à visão, como se só fosse legítimo os dois corpos ligados. O homem gemeu.
Para ela, por mais que ansiasse, foi de repente a compreensão: já não havia tempo. Mais
uma vez o homem gemeu e lançou-se sem dó, sem pena. Mais uma vez o gemido, e outro, e
ele, rápido, arfou e disse coisas e insistiu nela, cada vez mais rápido, cada vez mais,
e ela agora sem jeito, dispondo-se, contornando-se ao prazer alheio, fazendo-se o vaso das
coisas que viriam. Foi quando ouviu:
Meu amor.
E ela, que não era amor de ninguém, compreendeu que estava alforriada pela impostura,
que tudo estaria acabado a partir de agora: finalmente abriu os olhos, finalmente e a
tempo de ver o homem que tombou abatido e inútil a seu lado na cama. Meu amor, ele ainda
ousou repetir, esforçando os lábios numa palavra que não cabia em sua boca, não no
meio daquela cama no meio daquele quarto de solteiro. O homem limpou-se com o lençol e,
antes de fechar os olhos baços rumo ao sono, deu-lhe um sorriso, como se fosse meigo ou
terno, brando só porque esteve nu e se repletou numa mulher.
Ela deu de mão no mesmo lençol, enfrentando, magoada, a textura úmida. Com as pontas
dos dedos, arremeteu-o aos pés da cama. Afofou o travesseiro e estendeu-se ao lado do
homem, apequenada numa espécie de resignação: ele fizera nela as coisas que são só
ânsia, às quais não correspondem doçura nenhuma, nas quais só se ama, ou se diz que
se ama, um pouco antes do fim. Quis, porque era moça, porque se acostumara à maciez da
companhia, quis encostar o rosto ao peito magro, sentir o pulmão respirando em compasso
sereno; quis, como quis, merecer o sagrado de uma pele que descansa. Não podia, não com
aquele homem, não com aquele cuja imagem fazia nascer um enjôo doce.
No entanto, não sossegava. Como se ainda não pudesse caber na quietude, apoiou-se sobre
o cotovelo e viu o homem de carnação débil e de músculos frouxos. Viu mais: o homem
galante ao entrar na sala de aula, a fala pausada, um deus de letra redonda, pensou no que
havia pensado que teria com ele, nas coisas que falava, no amor prometido por descuido, e
reacendeu. Os dedos migraram sobre os pêlos grisalhos do peito, atravessando o ventre
alteado, até espalmar a mão. Um tremor. Retrocedendo séculos, ela apenas queria, como
uma ancestral épocas antes quisera. Mas era sozinha que tinha de estar com o outro,
porque o outro que cabia naquela cama lhe havia roubado, com suas ordens e seu sono, a
presença salvadora. E, vendo o homem que dormia, extinto do quarto e apagado das coisas,
resolveu apaziguar-se. Com medo de mexer errado em si mesma, foi cuidadosa. Para si mesma,
podendo olhar-se inteira, teve zelo e paciência.
Antes que o mundo lhe sobreviesse, antes de se tornar fina e limpa a atmosfera, antes
mesmo de o prazer surgir da solidão a que fora arrojada, cometeu: beijou os lábios do
homem. Foi então que se uniu a ele, só quando pôde beijá-lo e só naquele instante
seco, para nunca mais. E depois de beijá-lo, depois de compor e desatar nós, e sem que
ele sequer se inteirasse de um mundo que se construía e desmoronava a seu lado, a moça
deitou-se de olhos abertos. E as pupilas estavam largas, tranqüilas, vingadas. A penumbra
começava a azular as cores do quarto.
Acordou de um sono muito curto e sobressaltado. Ele continuava lá, de costas para ela.
Naquele pouco tempo, fez-se o movimento das miudezas, e ele, com sua ausência, havia
transformado a nudez e o prazer de ambos em blasfêmia. Cheia dos odores, acendendo as
luzes pelo caminho, foi até o banheiro e encheu de água o côncavo das mãos, espargindo
rosto e colo. Mas ainda não era o suficiente, e esqueceu-se muito tempo sob a água da
ducha. Enxugou-se com uma toalha áspera. Foi até o quarto e, tateando, encontrou o
interruptor que fez brilhar a lâmpada fraca e amarela. Vestiu-se. O homem dormia numa
fragilidade tão grande de corpo lasso e de músculos frouxos. Cobriu-o com o lençol,
protegendo-o. Piedosa, de volta ao mundo, juntando sua nova sabedoria, beijou-lhe a
fronte.
Bateu a porta. No corredor do edifício, era partida.
Saiu à rua de olhos muito abertos. Pensou que uma pessoa deveria fazer apenas aquilo que
entendesse. E seguiu pela avenida vazia de fascinação.
Cíntia Moscovich (1958), nasceu em Porto Alegre (RS). Escritora, jornalista, mestre
em Teoria Literária, foi diretora do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Em
1995, foi a ganhadora do Concurso de Contos Guimarães Rosa, da Rádio France
Internationale, de Paris.
Obras:
O reino das cebolas, 1996 indicação para o Prêmio Jabuti.
Duas iguais:Manual de amores e equívocos assemelhados, 1998 Prêmio Açorianos de
narrativa longa.
Anotações durante o incêndio, 2000 Prêmio Açorianos, na modalidade de contos.
Arquitetura do arco-íris, 2004 - Prêmios Portugal Telecom e Jabuti
-2005.
Texto extraído do livro 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura
brasileira, Editora Record Rio de Janeiro, 2003, organização de Luiz
Ruffato, pág. 269.
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