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O Anti-Natal de 1951
Carlos Sussekind
No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: "Requisito-vos"
(ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de Janeiro) "duas passagens de ida e
volta em 1ª classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em
São Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um
menor, que viajam a serviço deste Juízo".
Muito atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz esperar. Mas,
depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens,
pois o regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro.
Adiantei-me, pois. Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros.
A idéia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me
comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia
inteiro (25 de dezembro) que passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à
nossa concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera natalina dentro
do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, ele lendo, eu nos meus devaneios.
Dia 26 estaremos de volta. Não daremos nem receberemos presentes. O único presente
tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito
que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho
estarão na deles, numa boa.
Verifico que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no "Santa Cruz", em cabine
individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do
preço desse trajeto feito em poltrona comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e
chegaríamos a São Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à
minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que
ficaria documentado para sempre. Basta a fraude de dizer que eu e o Lourencinho vamos
"a serviço do Juízo".
Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem
ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho
uma viagem repousada. Se tiver de ir e vir de diurno o que seria a hipótese mais
econômica , a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o
fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos.
Precipitado no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda
reunida de como é o trem encantado em que viajaremos os dois. Vagões de aço
inoxidável. As poltronas forradas de camurça. Giratórias. Ninguém em pé, todos
acomodados, de fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma
trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como o do cinema Metro,
trem de cinema, primeiro você pensa que é por causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma
estação, abrir-se a porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a
temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma inalterável e
suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos beijos. Quando não se beijam,
cantam. Um sonho!
Diante da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que só vai a
São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se isso de anti-Natal funcionará
mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz, meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a
perspectiva da viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que
faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 há mais de 30 anos,
portanto , adverte logo: Desista disso de querer mostrar parques e avenidas e
monumentos e pessoas! Iremos cada qual para seu lado.
Vou buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o de ontem.
Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a assinatura era mesmo do juiz de
menores, um desaforo. Conclui dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar
os bilhetes, pois o regulamento fala em "três dias antes da viagem": sendo esta
no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera 24 como sendo ao mesmo tempo o
dia da viagem e a véspera! Evito discutir etc.
Risadas do homenzinho quando lhe falo em "noturno" e "Santa Cruz". A
requisição menciona apenas "passagem de 1ª". Sem especificar
"noturno", só se pode subentender "diurno". A fim de não dificultar
a interpretação favorável em São Paulo, para a volta, escreve "tarifa
noturna", o que permitirá que eu cogite de noturno de lá para cá. Mas, noturno em
"trem de madeira", sem leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A
poltrona, mesmo para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros 60
para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores só me deu o direito de
andar dentro do trem até São Paulo e de São Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568
cruzeiros redondos. Acho infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em
"escrúpulo" de pleitear coisa melhor. . . O Governo sabe com quem lida. As
bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras dobras.
Volto no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o primeiro passageiro
atendido. Entretanto, não posso ter os assentos que peço, na sombra. "Nós aqui
desconhecemos os lugares que são no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para
destacá-los automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja".Conformo-me.
Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas,
quando se referiu ao dia da viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco
palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha que deve ser
retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê n° 5 já está outro funcionário, diverso
do "amabilíssimo" com quem falei ontem. Objeta-me que a retificação não é
da sua competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará a trabalhar
às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo. Volto então ao agente substituto.
Ouve-me em silêncio. Manda chamar o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim,
austeramente: O funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não
cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem sua culpa. Atenda-o,
portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser modificado, modifique-o. Se não puder,
extraia outro passe.
E dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de ajustar
pachorrentamente os carbonos e de "experimentar" noutro papel, de rascunho,
Freitas pega solenemente o lápis, calca-o, descobre o carbono e diz:
Não deu certo. Espero, pois, 15 minutos para que ele extraia novo passe.
Seria justo que minha odisséia terminasse aí. Mas não terminou. Vou para o bilheteiro
do guichê n° 1. Examina os novos passes, pede-me a carteira funcional e me diz
secamente: 60 cruzeiros pelas duas poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto:
Que é que essas poltronas têm de mais?
Ele não demora na resposta:
Nada.
Então por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé?
O homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que vai dizer.
Responde-me:
Iria.
Quer dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua passagem requisitada
pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da Justiça, não tem direito sequer a viajar
sentado nas 11 horas do percurso.
Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que tenho pela frente, se as
poltronas 37 e 38 do carro "B" ficam, ou não, na sombra. Com uma irritação
mal disfarçada em calma "superior", responde-me:
Meu caro senhor, quer um conselho? Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele
pode decidir.
Ali a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é igual nos
benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de 7:25 às 18:25, quem tiver sol
pela manhã não o terá mais à tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará
com o sol de depois do meio-dia.
Rimo-nos, ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos.
Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim. As providências que
tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal, meu e do meu filho, já estão tomadas.
Carlos Sussekind, como seu pai, nasceu no Rio de Janeiro. Traduziu diversas obras e
lançou, como de autoria de Carlos & Carlos Sussekind, o livro "Armadilha
para Lamartine". Os diários do pai e do filho fornecem material para contar uma
história sob a perspectiva da loucura no cotidiano.
O texto acima está entre "Os
Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva Rio de
Janeiro, 2000, pág. 544, seleção de Ítalo Moriconi, e foi publicado originalmente em
"Contos Para Um Natal Brasileiro", organizado por Betinho para a
Relume-Dumará Rio de Janeiro, 1996.
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