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Emboscada
Herberto Sales
Os dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá, vinha na frente. Era um
cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes ainda para a sua
idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a capanga de munição.
Na semi-obscuridade da madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando
funebremente o rio. Os dois homens saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos
lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás
de uma touça de malva ou de vela,me, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora,
porém, tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num passo
regular, encolhidos nos capotes surrados.
O ar era frio e úmido.
Será que ele passa hoje? perguntou Guido.
Tem de passa,r respondeu o outro homem. Não é possível que o santo
dele seja tão forte.
Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...
É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.
De qualquer maneira, confesso que isto já está me amolando disse o outro.
O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com
uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia
marcas nos longos caninos encardidos.
Quanto mais se você tivesse ajudado agente a matar o Major Cavalcanti!
disse.
O que foi que teve?
Nós esperamos por ele na emboscada oito dias seguidos.
Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta paciência. Juro.
Será que nunca lhe aconteceu uma coisa destas?
A mim? Deus me livre!
Andando sempre, os dois homens contornaram uma grande rocha, e atravessaram em seguida uma
moita de capim-gordura. O negro Guido olhou: amanhecia. A aurora barrava o horizonte de
vermelho, e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio a um espantoso incêndio.
Então o velho Patuá, que usava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas, disse
de repente:
Pois pode preparar o dedo, companheiro, que de hoje ele não passa.
Como é que você. pode saber disso? indagou o outro homem, meio intrigado.
Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe interessa. Sobre certas coisas é melhor
a gente; não fazer perguntas.
O negro Guido era muito supersticioso e revelava uma espécie de místico respeito pelo
seu companheiro. Disse com hesitação:
Eu sempre ouvi dizer que você era um mestre em rezas bravas... Na verdade, eu
estou aqui faz somente um mês. Mas em minha terra me contaram muitos casos que
aconteceram com você.
Não lhe disseram que eu tinha parte com o Diabo? perguntou sardonicamente o
velho.
E o outro, olhando-o de lado:
Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi dizer que você tinha reza para
amarrar rastro, e até para fazer uma pessoa desaparecer.
O velho Patuá assumiu um ar de mistério:
Você fala demais, Guido.
Eu não falei por mal... disse o outro homem, arrancando uma haste de capim
com a larga mão de palma musculosa. Se você não gosta de perguntas, acabou-se.
Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje.
Pois fique calado, e espere.
Os dois homens subiram uma rampa, entraram por um atalho, e pararam defronte de uma
pequena caverna,. Em torno, a vegetação era rude e agressiva. Instalaram-se atrás de
uma pedra, como já vinham fazendo havia dois dias, e ó velho Patuá observou :
Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade.
Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa
da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes
escarpas. No céu, um tom róseo substituía, agora o vermelho sangüíneo de antes.
Pássaros-pretos cantavam.
Quer fazer uma combinação, Patuá? perguntou o negro Guido.
Qual é?
Como você tem melhor pontaria, atira na cabeça dele.
E você?
Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil
O velho Patuá, teve um risinho sarcástico :
Não pensei que você fosse tão nervoso, Guido.
O outro homem guardou silêncio, demonstrando não ter gostado da observação do
companheiro. De repente, atentando na pedra que ficava à entrada da caverna, foi
empolgado pela certeza de estar bem protegido. "Caso ele reaja" pensou
"toda a vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira." Depois
desembainhou a sua longa e afiada faca, de dez polegadas, e começou a cortar fumo para um
cigarro.
Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para
inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica, as virtudes do
esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada
da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a
estrada coberta de seixos, àquela, hora deserta,, por onde o homem teria de passar.
Vai ser uma pontaria bonita disse. Ele não vai nem gemer.
O chão da caverna era coberto de capim tufos verdes, amarelados, macios e o
velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas, retirando da
capanga a munição para a .carga.
Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de vigia disse. Sentado
como estou, não posso enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de joelhos, você
domina a estrada toda. É só um instante, Guido. Eu carrego a arma depressa.
Está certo concordou o outro homem.
Está enxergando bem? perguntou ainda o velho.
Estou.
De joelhos como se achava, Guido dominava realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na
altura do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a cabeça. Nessa posição,
acendeu um cigarro, tendo o cuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna, o que
fez por duas vezes. Mas logo depois, atinando com a inconveniência de estar fumando ali,
pois a fumaça, poderia, denunciar sua presença no loca,l, apagou imediatamente o
cigarro, esmagando-o na ponta de uma pedra. Depois soprou com força, para expelir o resto
de fumaça que tinha na boca.
Cadê a rolimã? perguntou o velho Patuá.
Você vai carregar com ela? disse Guido, sem desviar os olhos da estrada.
Vou. Você não quer que eu atire na cabeça dele? Portanto, vou precisar de uma
carga possante. E ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve estar passando por
aqui.
Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro
que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes,
buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia
servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de
pitanga.
Tome disse, passando-a ao companheiro.
O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a examinou por um momento, como se
estivesse avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do homem a ser morto. Com
ela carregou a arma, juntando boa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depois socou a
bucha e colocou a espoleta.
Pronto? perguntou Guido.
Pronto respondeu o velho, limpando nas calças a mão suja de pólvora.
E depois de mais uma vez examinar a arma :
Agora você carregue a sua, que eu fico de vigia.
Mais que depressa, o negro Guido trocou de lugar com o companheiro e tratou de carregar o
seu clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da capanga, que a carga talvez não
ficasse bastante forte, perguntou ao velho:
Você não tem aí um chumbo mais grosso do que este meu?
Tenho respondeu o outro homem.
Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem; é chumbo para matar onça.
Tome.
E passou a lata de chumbo ao negro.
Mas eu acho bom você botar estes pregos também acrescentou.
Reforça mais.
O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e socou, bem socada, a carga do seu clavinote.
Não bote chumbo demais não observou o velho Patuá.
Você está pilheriando? respondeu Guido, guardando na capanga o pedaço de
chifre que lhe servia de depósito de pólvora.
Pilheriando?
Sim, companheiro. Será que você acha que eu não sei carregar uma arma?
Estou avisando por avisar.
Fique sossegado. A carga foi bem calculada .
O velho Patuá voltou-se rapidamente para o companheiro e, vendo que este j á havia
carregado a arma, disse:
Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E agora fique aqui junto de mim.
O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga, e
entrincheirou-se atrás da pedra.
Eu não estou enxergando bem daqui, não disse, espiando por entre as folhas
do imbezeiro.
Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.
Então, fique concordou o outro homem.
E você j á sabe : só atire quando eu mandar.
Está certo respondeu Guido. Ma,s eu acho que a gente só deve atirar
quando ele entrar
naquela, curva.
E com o dedo apontou o local.
Era o trecho mais estratégico da estrada, porque ali a vítima poderia ser colhida pelas
costas.
O tiro vai ser seguro garantiu Guido.
O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar nenhuma sugestão do companheiro.
Como jagunço que j á tomara parte em várias emboscadas, tinha, de resto, as suas
vaidades. Respondeu secamente:
Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe digo.
Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta
da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de
capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma
visibilidade perfeita.
Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora confessou Guido.
É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem respondeu o velho Patuá. Não
tem mais nem um pingo.
Se ele não tivesse se atrasado disse o outro homem eu não estava
agora com a garganta seca. Nós trouxemos bastante cachaça.;
No fundo, também o velho Patuá sentia falta da bebida. Entretanto, mordaz, com o intuito
de rebaixar o companheiro, perguntou:
Será que você precisa beber para criar coragem?
Mas já o negro Guido não o escutava:
Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?
O outro homem estava ouvindo. E identificou o ruído como sendo o dos cascos de um animal
que vinha subindo a serra.
É. Talvez seja ele disse. Vamos nos preparar para fazer fogo.
Os dois clavinotes estavam apontados em direção à estrada. Os canos tinham sido
apoiados sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A essa altura, j á o Sol
faiscava nos lajedos, e o ar, embora frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousar
perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir os dois homens. Houve em seguida um
rumor de folhas, provocado por uma lagartixa em fuga.
Já vem bem perto disse o negro Guido, com o dedo no gatilho da arma.
O tropel faziase ouvir cada vez mais próximo. De repente, surgiu, no topo do
atalho, a cabeça de um cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o outro dava
visíveis mostras de excitação. A vista da cabeça do cavalo, seus lábios chegaram
mesmo a embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse assaltado.
Será ele mesmo? perguntou.
Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Guido logo
reconheceu o fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza no seu espírito
transformou-se imediatamente numa sensação de alívio, marcada a um só tempo de medo e
crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com o dedo no gatilho. Viu o homem parar
de assobiar, enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novo guardou no bolso, e
acender o cigarro.
Foi quando o velho Patuá comandou :
Fogo !
O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria contra o paletó de brim cáqui, onde
havia manchas de suor.
Fogo! repetiu o velho Patuá, num tom de irritação.
E, com o clavinote apontado para a nuca do homem, apertou o gatilho. O negro Guido
acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo tempo que a caverna se enchia de fumaça.
Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram. Um desabrido tropel foi
então ouvido : era o cavalo do fazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado,
corria doidamente estrada abaixo as caçambas batendo como sinos. Como sinos
roucos. Estranhamente roucos.
Herberto de Azevedo Sales, jornalista, contista, romancista e
memorialista, nasceu em Andaraí, (BA), em 21 de setembro de 1917. Filho de Heráclito
Sousa Sales e Aurora de Azevedo Sales. Fez o curso primário em sua cidade natal, e o
curso ginasial (abandonado no 5o ano) em Salvador, no colégio Antonio Vieira, dos
jesuítas. O professor Agenor Almeida descobriu-lhe, numa prova, a vocação literária,
chamando para isso a atenção do padre Cabral, que por sua vez foi o descobridor, alguns
anos antes, no mesmo colégio, da vocação literária de Jorge Amado. Abandonados os
estudos, voltou para Andaraí, onde viveu até 1948. Com a publicação, em 1944, de
Cascalho, seu romance de estréia, projetou de impacto o seu nome nos meios
literários do país.
Foi eleito em 6 de abril de 1971 para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira
nº. 3, sucedendo a Aníbal Freire da Fonseca, e recebido em 21 de setembro de 1971, pelo
acadêmico Marques Rebelo.
No Rio de Janeiro, para onde então se transferiu e residiu até 1974, foi jornalista
militante, com atividade nos "Diários Associados", de Assis Chateubriand, na
área da revista O Cruzeiro da qual foi assistente de Redação, na melhor
fase desse famoso órgão da imprensa brasileira. Exerceu o cargo de diretor de outras
unidades da mesma empresa, inclusive de sua editora de livros. Em 1974 mudou-se para
Brasília, onde foi por dez anos diretor do Instituto Nacional do Livro, e, por um ano,
assessor da Presidência da República, sob José Sarney. A partir de 1986, por quatro
anos, residiu em Paris, servindo como adido cultural à Embaixada brasileira. Regressando
ao Brasil, fixou residência em São Pedro da Aldeia, onde levava vida isolada, de
auto-exílio, o que deu motivo a ser chamado, em artigo de Josué Montello, "O
Solitário de São Pedro da Aldeia". Foi casado com Maria Juraci Xavier Chamusca
Sales e pai de três filhos: Heloísa, Heitor e Herberto.
Herberto Sales faleceu no dia 13 de agosto de 1999, no Rio de Janeiro. Seu
corpo foi velado no Salão dos Poetas Românticos, na Academia Brasileira de Letras. Seus
restos mortais estão no Mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista
Obras:
Cascalho, romance (1944);
Além dos marimbus, romance (1961);
Dados biográficos do finado Marcelino, romance (1965);
Histórias ordinárias, contos (1966);
O sobradinho dos pardais, infanto-juvenil (1969);
O lobisomem e outros contos folclóricos, contos (1970);
Uma telha de menos, contos (1970);
O Japão: experiências e observações de uma viagem, notas de viagem (1971);
A feiticeira da salina, infanto-juvenil (1974);
A vaquinha sabida, infanto-juvenil (1974);
O homenzinho dos patos, infanto-juvenil (1975);
Armado cavaleiro o audaz motoqueiro, contos (1980);
Einstein, o minigênio, romance (1983);
Os pareceres do tempo, romance (1984);
O menino perdido, infanto-juvenil (1984);
A volta dos pardais do sobradinho, infanto-juvenil (1985);
A porta de chifre, romance (1986);
Subsidiário, memórias (1988);
Na relva da tua lembrança, memórias (1988);
Andanças por umas lembranças (Subsidiário 2), memórias (1990);
O urso caçador, infanto-juvenil (1991); Eu de mim com cada um de mim (Subsidiário 3),
memórias (1992);
Rio dos morcegos, romance (1993);
As boas más companhias, romance (1995);
Rebanho do ódio, romance (1995);
A prostituta, romance (1996).
O texto acima foi extraído da "Antologia escolar de contos brasileiros",
Edições de Ouro - Rio de Janeiro, s/data, pág. 215, organizada por Herberto Sales,
seleção de Ivo Barbieri e Maria Mecler Rampell.
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