A história da Copa de 50 nunca foi escrita do jeito que aconteceu. Digo isto porque eu
estava lá. Não nas arquibancadas, mas no banco. No banco de suplentes. Com aqueles
cobras todos em campo, Augusto, Danilo e Zizinho, Ademir e Jair da Rosa Pinto, sem falar
no divino Bauer, era uma vasta honra já figurar entre os reservas. Dali eu pude ver
direitinho como a coisa se passou. E não se passou como todo mundo diz. Há uma trama em
torno desse jogo final para atender a não sei que interesses, e milhões (que digo:
bilhões) de pessoas vêm sendo estupidamente enganadas dia após dia, desde então.
A partida começou encrencada, concentrada no meio de campo, ninguém se arriscando muito.
O empate nos bastava, mas queríamos ganhar. Aliás, tínhamos certeza da vitória. No
vestiário, durante a preleção, Flávio Costa, nosso treinador, disse:
— Nada de humilhar os uruguaios. Campeões, sim, mas com generosidade. Nós brasileiro
somos um povo generoso.
O primeiro tempo deu em nada: zero a zero. Mantido o empate, seríamos campeões do mundo.
Para aclarar ainda mais essa certeza, aos 2 minutos Friaça chutou da entrada da área, à
direita de Máspoli, e abriu a contagem. No banco, alguém disse que pintava mais uma
goleada. Engano. A partir daí o jogo entrou em zona de sombra, desandou, principiou um
drama.
Bigode não se entendia com Obdúlio Varela e, dizem, chegou a levar dele um tapa na cara.
Eu não vi, mas a verdade é que Gighia passou a fazer de Bigode o que bem entendia. Numa
daquelas, aos 21, Gighia centrou e Schiaffino completou para o gol, deixando Barbosa a ver
navios. Não me sai da memória a imagem de Barbosa ajoelhado, tentando se erguer do
chão, mas com chumbo nas pernas.
Dez minutos depois, com Bigode parado em campo, a defesa atônita, Gighia passou feito um
torpedo e fez que ia cruzar. Juvenal correu para cortar, Barbosa abandonou o gol e Gighia
não cruzou, continuou correndo a toda velocidade e chutou de bico, sem nenhuma vergonha
chutou de bico. A bola passou entre Barbosa e a trave. Era o segundo gol deles, o gol que
poderia ter nos roubado a taça. Vi Flávio Costa baixar a cabeça e murmurar:
— Eu não acredito.
Com o Maracanã calado, duzentas mil pessoas congeladas e transidas de frio, apesar do
calor reinante, Flávio me chamou e disse:
— Vai lá e decide.
— Quem sai?
— Chico.
Eu era pequenino, magro, os calções largos demais para mim, a camisa enfunando no peito
e nas costas. Mas era ligeiro, habilidoso, atrevido. Além disso, dentro de mim, brilhava
como gema um sonho dinástico. Ao assinar a súmula vi que faltavam só cinco minutos. Mas
cinco minutos me bastavam. Nos primeiros três não vi a cor da bola, toquei
incidentalmente nela duas vezes, sem recebê-la de volta. Aos 44 Bauer veio evoluindo pelo
círculo central e fez menção de lançar para o lado oposto ao meu. Levantei o braço.
— Aqui, Bauer!, gritei apontando para o
próprio peito.
Bauer me vislumbrou de uma distância infinita. A bola veio vindo pelo alto, irônica,
girando sobre seus gomos pardos. Um zagueiro uruguaio, creio que Tejera, saiu babando no
meu encalço. No instante em que esticou a perna livrei-me dele com um toquezinho sutil,
entre as canetas. Mas já se atiravam sobre mim, como cérberos, Gambetta e Matias
Gonzalez. Livrei-me também dos dois, entortando um à direita e outro à esquerda.
Alguém mais vinha bufando às minhas costas, com trote de touro, os cascos tirando fogo
da grama: era o famigerado Obdúlio. Ao ouvir o aviso de Friaça — "Ladrão!"
—,
ergui a bola e puxei-a para trás num movimento de arco, aplicando no caudilho um
fenomenal sombrero. Ao ver que ele passava lotado, disse-lhe, vingando Bigode:
— Conheceu, papudo?
Obdúlio estatelou-se na grama, à entrada da pequena área. Máspoli, aterrorizado, abriu
os braços à minha frente. Lembro-me de Zizinho gritando: "Chuta!", e eu, com
toda a calma do mundo, pois não havia mais ninguém nem atrás nem à frente de mim,
exceto o pobre Máspoli, rolei mansamente aquela imensa e pesada bola parda para o nicho
mais recôndito do gol uruguaio, o gol do empate e da Copa.
Depois tudo se passou como em delírio. O Maracanã vindo abaixo, os companheiros correndo
na minha direção, eu sendo erguido no ar, primeiro Zizinho, depois Friaça, Ademir e
Jair da Rosa Pinto, até Barbosa veio lá de trás, num pique doido, e depois Flávio, o
prefeito da cidade, todo mundo, até o juiz, que pediu a bola e éramos campeões
—
campeões, CAMPEÕES
DO MUNDO!
E foi assim que ganhamos aquela Copa, a primeira de cinco, muito antes de se ouvir falar
em Pelé e Garrincha, Rivelino e Tostão, Ronaldo e Ronaldinho, pois desde o começo
ninguém nunca duvidou que éramos os melhores.
É uma vergonha que continuem mentindo e escrevendo a história de outro jeito.
O texto acima nos foi gentilmente enviado pelo escritor.
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