 |
O ventre seco
Por Raduan Nassar

1. Começo te dizendo que não tenho nada
contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da
vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as
coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a
falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não
conte mais comigo como tua ferramenta.
2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se, por sinal), me
ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu corpo, tentou me arrastar pra
lugares a que acabei não indo, e, não fosse minha feroz resistência, até pessoas das
tuas relações você teria dividido comigo. Não quero discutir os motivos da tua
generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te
fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar: "você não tem o direito de fazer
isso". Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.
3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e
hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade. Você tem
razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas
deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer proselitismo.
4. E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho nada contra esse
feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista, essa outra do
divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas que "estão varrendo as
bestas do caminho". E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula,
quero dizer simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho
graça no ruído de jovens como você. Que tanto falam em liberdade? É preciso saber
ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma
autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não
quero te governar.
5. Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você me atirou um
desdenhoso "velho" na cara. Nunca te disse, te digo porém agora: me causa
enjôo a juventude, me causa muito enjôo a tua juventude, será que preciso fazer um
trejeito com a boca pra te dar a idéia clara do que estou dizendo? É bastante tranqüilo
este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me doem os cotovelos.
Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de
curtir gentes maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes
maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.
6. Você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a exemplo do bom senso em
outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo. Aliás, só mesmo uma perfeita
distribuição de afeto poderia explicar o arroubo corriqueiro a que todos se entregam com
a simples menção deste sentimento. Um tanto constrangido por turvar a transparência
dessa água, há muito que queria te dizer: vá que seja inquestionável, mas tenho todas
as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor.
7. Farto também estou das tuas idéias claras e distintas a respeito de muitas outras
coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas
não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma
suposta fé na "ordem", afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no
propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como
você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido
arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir
que está de pé.
8. Você pode continuar falando em nome da razão, Paula, embora até o obscurantista, que
arranja (ironia!) essas idéias, saiba que a razão é muito mais humilde que certos
racionalistas; você pode continuar carreando areia, pedra e tantas barras de ferro,
Paula, embora qualquer criança também saiba que é sobre um chão movediço que você
há de erguer teu edifício.
9. Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este "velho
obscurantista", nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo meu corpo,
e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos,
encontre um lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida.
10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim como ao
movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê do desenhista que
ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno,
me mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se era agravo ou
elogio), você deixou escapar a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou
falando de um risco tosco feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente
apreensível pelo lápis de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre
presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.
11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar
tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça.
Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome
da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu
barulho, dou-lhe o meu silêncio.
12. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência,
não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar
muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem
maduro.
13. Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande
terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você faz de costume,
pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me aporrinhar. Versátil como você
é, desempenhe mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho.
14.. Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas muito,
mas muito cansado, Paula. (Teu baby-doll, teus chinelos, tua escova de dentes, e outros
apetrechos da tua toalete, deixei tudo numa sacola lá embaixo, é só mandar alguém
pegar na portaria com o zelador.)
15. Ainda: "a velha aí do lado", a quem você se referia também como "a
carcaça ressabiada", "o pacote de ossos", "a semente senil" e
outras expressões exuberantes que o teu talento verbal sempre é capaz de forjar mesmo
para falar das coisas mirradas da vida, nunca te revelei, Paula, te revelo agora:
"aquele ventre seco" é minha mãe, faz anos que vivemos em kitchenettes
separadas, ainda que ao lado uma da outra. Não seja tola, Paula, não estou te
recriminando nada, sempre assisti com indiferença aos arremedos que você fazia da
"bruxa velha, preparando a poção pra envenenar nossas relações". Te digo
mais: você talvez tivesse razão, é provável que ela vivesse a espreitar minha porta
das sombras da escadaria, é provável que ela do fundo dos corredores te olhasse "de
um jeito maligno", é provável ainda que ela, matreira dentro do seu cubículo, te
alcançasse todas as vezes que você saía através do olho mágico da sua porta. Mas
contenha, Paula, a tua gula: você que, além de liberada e praticada, é também versada
nas ciências ocultas dos tempos modernos, não vá lambuzar apressadamente o dedo na
consciência das coisas; não fiz a revelação como quem te serve à mesa, não é um
convite fecundo a interpretações que te faço, nem minha vida está pedindo esse
desperdício. Quero antes lembrar o que minha mãe te dizia quando você, ao cruzar com
ela, e "só pra tirar um sarro", perguntava maliciosamente por mim, te sugerindo
eu agora a mesma prudência, se acaso amanhã teus amigos quiserem saber a meu respeito.
Você pode dispensar "a ridícula solenidade da velha", mas não dispense o seu
irrepreensível comedimento, responda como ela invariavelmente te respondia: "não
conheço esse senhor".

Extraído do livro ""Menina a caminho", Companhia das Letras
São Paulo, 1997, pág. 61.
Para conhecer mais
sobre Raduan Nassar, clique aqui. |
Ilustração:
Orlando Pedroso
Orlando Pedroso, paulistano,
nasceu em 14 de fevereiro de 1959.
Em 1978, publica pela primeira vez, já na época da
abertura política, no jornal esquerdista "Em Tempo". Morou na Europa por três
anos e meio. De volta, em 85, passa a colaborar com o jornal Folha de São Paulo e com as
melhores e piores publicações da cidade, entre elas, Playboy, Capricho, Carícia,
Istoé, Exame, Claudia, Marie Claire, Elle, Quatro Rodas, Atrevida, Veja, Você s/a, além
de ilustrações e capas para editoras como Moderna, Ática, Senac, Scippione, Nova
Cultural, Ediouro e Salamandra.
Em sua empresa, a CO2 Gráficos,
desenvolve projetos gráficos para empresas e peças de teatro. É co-autor do "Livro
dos Segundos Socorros" dos Doutores da Alegria, além de ser responsável pela
criação de suas peças de comunicação.
Em 97 expôs nos espaços Unibanco de Cinema de São
Paulo e Rio os desenhos de "Como o Diabo Gosta" e em 2001, no espaço Ophicina,
em São Paulo, "Olha o Passarinho!".
Em 2002, organizou o livro "Dez na área, um na
banheira e ninguém no gol", lançado pela Via Lettera.
Prêmio HQMix de melhor ilustrador de 2001.
E-MAIL: orla@uol.com.br |
[ Principal ][ Biografias
][ Releituras ][ Novos escritores ][ Ilustrados ]
© Projeto Releituras Todos os direitos reservados. O Projeto Releituras um
sítio sem fins lucrativos tem como objetivo divulgar trabalhos de
escritores nacionais e estrangeiros, buscando, sempre que possível, seu lado
humorístico,
satírico ou irônico. Aguardamos dos amigos leitores críticas, comentários e
sugestões.
A todos, muito obrigado. Arnaldo Nogueira Júnior. ® @njo |
|
 |