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Somos
todos estrangeiros
Ivan
Lessa
Estrangeiro é o bairro em que moramos, estrangeira é a mulher que
encoxamos no elevador, estrangeiros são nossos pais, nossos filhos.
Nunca me senti em casa no Brasil, ninguém está em casa no Brasil:
todo mundo foi até a esquina, todo mundo foi tomar um cafezinho.
Achava que, de uma maneira ou de outra, eu estava embromando ou
sendo embromado por alguém. Que viver não era nada daquilo, que eu
não tinha nada com o peixe, que os verdadeiros brasileiros estavam
misteriosamente ocupados com seus sofrimentos, ou então atarefados
criando um Brasil melhor: gente andando rapidamente nas ruas da
cidade, ou cavando uma terra dura e ingrata. Os brasileiros eram
abstratos, distantes, mais calados do que comumente se supõe.
Conheço algumas vozes brasileiras: gostaria de saber escrever na
tonalidade do Jorge Veiga, ou do Moreira da Silva, misturada a uma
retórica aborrecida e às avessas semelhante à de Ruy Barbosa — como
o Hino à Bandeira acompanhado de caixinha de fósforos. Os sambinhas,
claro, eram brasileiros, o pessoal que sentava ao meu lado no
Maracanã era brasileiro, as piadas de papagaio eram brasileiras. Mas
tudo era de mentirinha, beirando sempre o pitoresco ou se
precipitando na tragédia policial ou no editorial dos jornais. A
vida a sério, os seis quarteirões em que me locomovia, as seis
pessoas com quem convivia não eram, digamos assim, bem brasileiros —
assim como eu, tinham máquina fotográfica a tiracolo e camisas com
palmeiras.
Em tudo que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em
minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em
quadrinhos, os livros, as notícias; os foxes. Éramos uma versão
pobre do que a vida deveria ser — e a vida vinha sempre em inglês,
em francês, em alemão. Mesmo quando dizia “eu te amo”, ou “não me
chateia”, eu me sentia vagamente ridículo, apropriador — feito um
homem de série da televisão mal dublado: minha boca fechada e as
palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.
Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas
tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada,
dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a
essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na
cidade no sul do país) e de minha relação com os severinos todos,
essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos
estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou
como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador,
um adaptador, um tradutor, conseqüentemente um traidor — porque eu
olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos
entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer,
como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu
era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.
Não consegui, como tanta gente de minha geração ou mais moça do que
eu, me interessar pelo folclore caboclo. A própria palavra folclore
já leva embutido um desaforo urbano. No entanto, achava que o setor,
devidamente estudado por profissionais competentes, me seria útil,
me forneceria, por exemplo, dados para escrever com justeza para um
público moço que vive de cinema, disco e que sabe, curiosamente, que
há uma tremenda safadeza, uma violência no ar. Não lia, portanto, O
Negrinho do Pastoreio — o que já preparava o terreno até para eu
deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava
pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa
forma, sobre mim, a meu respeito. Preocupado comigo mesmo, com esse
“meu respeito”, descobri-me sozinho no meio da avenida repetindo
eu... eu... eu... como um pronome enguiçado que não consegue engatar
a segunda e a terceira do singular. Perdi os joões, os josés, os
severinos, vim para o original, o estrangeiro, dando início a uma
certa paz, tranqüilidade, a noção de ordem: as legendas acabaram,
sou finalmente, completamente, um estrangeiro. Posso agora
conjugar-me no plural, dizer nós. Somos todos estrangeiros, sois
todos estrangeiros, são todos estrangeiros. Não há nada a fazer a
não ser descobrir esse estrangeiro que há na gente. Daí então a
gente começa a falar brasileiro, coça o saco, conta como é que é.
Daí então o papo, aquele papo, pode começar. Só que agora pra valer.
Londres, 7 de setembro, 1970
Ivan Lessa fez parte do grupo que colaborou e que, durante muito tempo, fez
sucesso no jornal "O Pasquim". Carioca, filho de Orígines Lessa e Elsie Lessa,
escreve valendo-se de um humor cheio de ironias. Auto-asilado na Inglaterra, segundo ele
por ter-se desencantado com o Brasil, trabalha na BBC de Londres.
Ivan Lessa faleceu aos 77 anos, em Londres, onde vivia, em
09/06/2012.
Texto extraído do livro “O melhor do Pasquim”, com Sergio Augusto,
Jaguar (org.) Desiderata – 2006 – pág. 168.
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