
J. Carino
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Releituras
J.
Carino
O prazer de ler é algo supremo, indescritível, incomparável. Ou,
talvez, somente outro prazer se compare a esse: o prazer de reler.
Reler é fruir novamente; é revisitar cenários, rever personagens,
sofrer e gozar com tramas e enredos; é reviver a magia da palavra
silenciosa, que entra por nossos olhos e invade nossa alma.
Releituras podem ter vários motivos. Um deles paga tributo ao tempo.
Isto acontece quando, por exemplo, já adultos ou mesmo velhos,
revisitamos obras lidas na juventude. Sei bem que essa leitura é
completamente outra. Ela vem acompanhada do peso inexorável de nossa
vida vivida, com seu acúmulo de experiências e conhecimentos. No
entanto, se é ditada pela busca do prazer antes desfrutado, essa
releitura, não obstante ser feita com outros olhos, resgata uma
parte daquele prazer, daquela magia existente na leitura originária.
Na releitura, talvez aqueles heróis e heroínas não nos emocionem
mais como no passado; talvez a história não nos prenda, ou o tema
tenha perdido a atualidade. Mas o sabor permanece, como permanecem
os sabores do bolo da avó, do carinho da mãe, dos primeiros
beijos...
Relemos também por obrigação, e isto quase nunca é prazeroso, a não
ser quando podemos conciliar essa obrigatoriedade com uma releitura
escolhida por nós. Então, por exemplo, um trabalho acadêmico, mesmo
com suas exigências teóricas e metodológicas, traz o prazer na
releitura.
Há, pois, vários caminhos que nos levam a releituras. Já me
aconteceu, uma ocasião, de reler por não ter outra opção. Era num
hotel, e o fim de semana estava chuvoso, impedindo passeios ou mesmo
as indefectíveis atividades esportivas ou de lazer a que muitas
vezes nos entregamos nessas ocasiões. Então, os deuses que nos
induzem às releituras — eles existem, caro leitor — me encaminharam
a uma estante velha numa sala escura. Lá, a meu dispor, havia alguns
livros, maltratados, coitados, mas entre eles pelo menos umas duas
ou três obras entre as quais escolhi a releitura que não só me
salvou do tédio como abduziu meu espírito, carregando-me para as
altas esferas aonde as boas leituras nos levam.
Uma releitura é a opção pelo já conhecido e querido. Não obstante, é
também uma garantia de encontrar o novo, o inusitado, no interior do
que já supúnhamos conhecer. Embora já saibamos o desfecho daquela
trama policial, ela continua saborosa. E, muitas vezes, apesar de
conhecermos o título, o autor e as linhas gerais da trama, somos
agraciados com um benfazejo esquecimento do final. Talvez isso se
deva a uma proteção por parte dos tais deuses da releitura...
Existem também as releituras compulsivas. São aqueles textos aos
quais voltamos sempre, com a mesma ânsia, o mesmo interesse. A feliz
expressão “livros de cabeceira” dá conta disso. Tais livros, uma vez
tendo entrado em nossa vida, permanecem nela, como um arrimo, uma
saída, ou como um simples prazer viciosamente benéfico que
procuramos sempre.
Outro motivo para releituras, este mais instrumental, porém
prazeroso também, são as obras que, pela perfeição de sua forma,
pelo trato perfeito da língua, pelas imagens bem construídas, pelas
tramas bem urdidas, pela estrutura bem planejada e construída, nos
servem de exemplo e de auxílio quando nós mesmos ousamos escrever.
O mundo vive hoje o crucial paradoxo: cada vez se publica mais, com
menos qualidade; e cada vez se lê menos. Talvez, prezado leitor,
diante dessa miríade de leituras possíveis, devamos voltar aos
braços seguros aconchegantes das releituras. Quem sabe?
J. Carino (1945), carioca da gema nascido no bairro de
Cordovil, é professor universitário aposentado de filosofia. Ao
longo de toda a vida, em meio ao cotidiano de aulas, coordenações de
cursos, orientações de alunos e à faina das pesquisas, sempre
encontrou tempo para escrever. Seus textos precisos e ao mesmo tempo
poéticos, combinam a racionalidade filosófica com a magia da criação
literária, transfigurando tudo em observação minuciosa,
inventividade e lirismo. É autor do livro de crônicas sobre o Rio de
Janeiro intitulado “Olhando a Cidade & Outros Olhares”, com
apresentação de Ruy Castro.
Para conhecer mais sobre este autor visite sua página
www.jcarino.com.br
E-mail: carino@urbi.com.br
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