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A
noite em que prenderam Papai Noel
José Eduardo Agualusa
O velho Pascoal tinha uma barba
comprida, branca, esplendorosa, que lhe caía em tumulto pelo peito.
Estilo? Não: era apenas miséria. Mas foi por causa daquela barba que
ele conseguiu trabalho. Por isso e por ter nascido albino, pele de
osga e piscos olhinhos cor-de-rosa, sempre escondidos por detrás de
uns enormes óculos escuros. Naquela época já nem pensava mais em
procurar emprego, certo de que morreria em breve numa rua qualquer
da cidade, mais de tristeza que de fome, pois para se alimentar
bastava-lhe a sopa que todas as noites lhe dava o General, e uma ou
outra côdea de pão descoberta nos contentores. À noite dormia na
cervejaria, na mesa de bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do
General, e sonhava com a piscina.
Tinha trabalhado quarenta anos na
piscina — desde o primeiro dia! — como zelador. Sabia ler, contar, e
ainda todas as devoções que aprendera na Missão, sem falar na
honestidade, higiene, amor ao trabalho. Os brancos gostavam dele,
era Pascoal para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças
pequenas, alguns até o convidavam para jogar futebol (foi um bom
goleiro), outros faziam confidências, pediam o quarto emprestado
para fazer namoros.
O quarto de Pascoal ficava junto aos
vestiários masculinos. Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe
palmadas nas costas:
— Pascoal, o único preto em Angola que
tem casa com piscina.
Riam-se:
— Pascoal, o preto mais branco de
África.
Contavam piadas sobre albinos:
— Conheces aquela do soba, no Dia da
Raça, que foi convidado para discursar? O gajo subiu ao palanque,
afinou a voz e começou: Aqui em Angola somos todos portugueses,
brancos, pretos, mulatos e albinos, todos portugueses.
Os pretos, pelo contrário, não
gostavam de Pascoal. As mulheres muxoxavam, cuspiam quando ele
passava, ou, pior do que isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças
saltavam o muro, madrugadinha, e lançavam-se à piscina. Ele tinha de
se levantar, em cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma
espingarda de chumbinhos, em segunda mão, e passou a disparar contra
eles emboscado por detrás das acácias.
Quando os portugueses fugiram, Pascoal
compreendeu que os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu com
desgosto à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, ao saque das casas.
O que mais lhe custou, nos meses seguintes, foi vê-los entrar na
piscina, camarada para aqui, camarada para ali, como se já ninguém
tivesse nome. As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal
expulsava a tiros de chumbinho, faziam xixi do alto das pranchas.
Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte,
nem no outro, nem nunca mais. O cloro acabou pouco depois. A piscina
murchou. Ficou amarela, de um amarelo baço, ficou ainda mais baça, e
subitamente encheu-se de rãs. Ao princípio Pascoal tentou combater a
invasão indo buscar a espingarda. Não resultou. Quanto mais rãs
matava, mais rãs apareciam, rãs felizes, enormes, que nas noites de
lua cheia cantavam até de madrugada, abafando o eco dos tiros, ao
longe, e latido dos cães.
Uma espécie de cansaço desceu por
sobre as casas e a cidade começou a morrer. África — vamos
chamar-lhe assim — voltou a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se
cacimbas nos quintais. Acenderam-se fogueiras nos jardins. O capim
rompeu o asfalto, invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres
pilavam milho nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para
guardar sapatos. Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de
cabras cresceram a comer bibliotecas, cabras eruditas,
especializadas em literatura francesa, umas, outras em finanças ou
arquitectura. Pascoal esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o
dinheiro que tinha e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina:
— Amiga —, disse-lhe —, é só por
alguns meses. Vou vender ovos, vendo os pintos e compro água boa,
compro cloro, vais voltar a ser bonita como antigamente.
Os tempos que se seguiram, porém,
foram ainda piores. Uma tarde apareceram soldados e levaram as
galinhas. Pascoal não disse nada. Devia, talvez, ter dito alguma
coisa.
— Esse albino está armado em arrogante
—, irritou-se um soldado. — Deve pensar que é branco, vejam só, um
branquinho de imitação.
Bateram-lhe. Deixaram-no como morto
dentro da piscina. Meses depois, vieram outros soldados. Tinham-lhes
dito que ali havia um albino que criava galinhas, e como não
encontraram nenhuma, é claro, bateram-lhe também.
A guerra regressou com muita raiva.
Aviões bombardearam a cidade, o que restava dela, durante cinqüenta
e cinco dias. Ao trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina.
Durante semanas, andou Pascoal à deriva por entre os escombros.
Uma vez apareceram três homens de
jipe, um branco, um mulato, um preto, e todos de casaco e gravata.
— Meu Deus! Meu Deus! — Lamentou o
mulato, fazendo com a mão um largo gesto de desânimo. — Foi um
urbicídio isto, um urbicídio...
Pascoal não sabia o significado da
palavra mas gostou dela. “Foi um urbicídio”, repetiu, e ainda hoje,
sempre que se lembra da piscina, fica horas a remoer aquela frase:
“foi um urbicídio, aquilo, um urbicídio”. Uma tropa de brancos muito
estrangeiros, todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa
madrugada de chuva e trouxe-o para Luanda. Ficou dois dias no
hospital, onde lhe trataram das feridas e lhe deram de comer. Depois
mandaram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era
dezembro e fazia muito calor, o indiano do novo supermercado, na
Mutamba, veio falar com ele:
— Precisamos de um Pai Natal —
disse-lhe —, contigo poupávamos na barba e, além disso, como tens um
tipo nórdico, ficava a coisa mais autêntica. Estamos a dar três
milhões por dia. Serve?
A função dele era ficar em frente ao
supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na
cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas
almofadas na barriga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia
inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos
sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia
prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização
não-governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais
a entrar na loja. “Sou o Pai Natal cambulador”, explicou ao General.
Cambulador foi ofício em Angola até à
primeira metade deste século: gente contratada para aliciar clientes
à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava
mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços
abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca
nenhuma mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com
deferência:
— Boa-tarde, Pai Natal! Este ano como
é que estamos de prendas?
O velho apreciava sobretudo o espanto
dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para tocar o
saco. Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças:
— Paizinho Natal — implorou —, me dá
um balão.
Pascoal tinha instruções severas para
só oferecer preservativos às crianças acompanhadas, e mesmo assim
dependia do aspecto da companhia. O contrato era claro: meninos da
rua deviam ser enxotados.
Ao fim da segunda semana, quando a
loja fechou, Pascoal decidiu não tirar o disfarce e foi naquele
escândalo para a cervejaria. O General viu-o e não disse nada.
Serviu-lhe a sopa em silêncio.
— Faz muita miséria neste país —,
queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa —, o crime recompensa.
Nessa noite não sonhou com a piscina.
Viu uma senhora muito bonita descer do céu e pousar na beira da mesa
de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas
brilhantes e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele
como se ela fosse um candeeiro.
— Tu és o Pai Natal —, disse-lhe a
senhora. — Mandei-te aqui para ajudar os meninos despardalados. Vai
à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças.
O velho acordou estremunhado. Na noite
densa, em redor da mesa de bilhar, flutuava uma poeira
incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor mas não conseguiu
adormecer. Levantou—se, vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu
para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme
na praça deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra
principal, cada uma no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso
entediado. Na outra montra estavam os monstros mecânicos, as
pistolas de plástico, os carrinhos eléctricos. Pascoal sabia que se
partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através das
grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já estava
a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu um polícia.
No mesmo instante, atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e
Pascoal viu a Senhora, a sorrir para ele, flutuando sobre o lume das
flores. O polícia não pareceu dar por nada.
— Velho sem-vergonha — gritou. — Vais
dizer-me o que levas nesse saco?
Pascoal sentiu que a sua boca se
abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se a dizer:
— São rosas, senhor.
O polícia olhou-o, confuso:
— Rosas? O velho está cacimbado...
Deu-lhe um forte tapa com as costas da
mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à cabeça dele e gritou:
— São rosas? Então mostra-me lá essas
rosas!...
O velho hesitou um momento. Depois
voltou a olhar para a acácia em flor e viu outra vez a Senhora
sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no
saco e despejou-o aos pés do guarda. Eram rosas, realmente — de
plástico.
Mas eram rosas.
José Eduardo Agualusa
(13/12/1960) é natural de Huambo, Angola. Estudou Silvicultura e
Agronomia em Lisboa, Portugal. Sua família é portuguesa pelo lado
paterno e brasileira pelo lado materno. Casado, pai de dois filhos,
seus livros são sucesso de vendas na língua de origem e são
traduzidos em diversos idiomas. É jornalista e divide seu tempo
entre Luanda, Lisboa e viagens ao Brasil. Seu romance, "O vendedor
de passados", foi agraciado com o Prêmio de Ficção Estrangeira
concedido anualmente pelo jornal inglês "The Independent", em 2007.
Alguns de seus trabalhos:
A conjuntura
Coração dos bosques
Lisboa africana
Manual prático de levitação*
Nação crioula*
Estação das chuvas*
Um estranho em Goa*
O ano em que Zumbi tomou o Rio*
O vendedor de passados*
*Os livros assinalados fazem parte da Coleção Identidade, da Gryphus
Editora, que tem como objetivo divulgar no Brasil as literaturas de
todo o vasto espaço onde se fala a nossa língua.
Texto extraído do livro
“Manual Prático de Levitação”, Gryphus Editora – Rio de Janeiro, 2005,
pág. 3.
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