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José J. Veiga
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Vestido de fustão
José J. Veiga
Os dois elevadores entraram em pane ao mesmo tempo e todo mundo precisou usar a escada.
Por sorte dos moradores e visitantes, o prédio, antigo, ó tinha seis andares, e ninguém
se estafava em demasia para subir ao seu andar. Tinha os idosos, claro, mas esses, não
precisando sair todos os dias obrigatoriamente, podiam muito bem esperar o conserto sem
inconvenientes insuportáveis. Talvez até que ficarem retidos em casa por um ou dois dias
resultasse em benefício para eles, por mantê-los afastados dos perigos das ruas, mesmo
sendo contra a vontade.
Com o enguiço simultâneo dos elevadores a administração acordou para a necessidade de
limpar a escada. Na madrugada para o segundo dia fez-se bela faxina, e quando os moradores
começaram a descer de manhã ficaram literalmente encantados. Só os mais antigos se
lembravam que os degraus eram de mármore, e agora reapareciam como que renascidos. E na
curva de cada meio-andar havia um vitral que os curiosos ficavam sabendo que fora feito no
ateliê de lustres e vitrais de Luiz Giongi, avenida Augusto Severo 48. Todos os cinco
vitrais, uns representando flores e folhagens, outros figuras femininas com vestes gregas,
foram lavados a jatos de água e sabão nas duas faces, e depois enxugados, mas isso
aparentemente só na face interna; a externa foi deixada para se enxugar por si mesma.
A escada não era muito larga, e como os degraus na parte oposta à parede se estreitavam
para acompanhar a curvatUra, a ponto de não poderem ser usados sem risco, quando
acontecia de quem ia subindo encontrar pessoas que vinham descendo, quem subia precisava
se espremer contra a parede para dar passagem aos descentes. Mas isso não chegava a ser
nenhum transtorno; na maioria eram gente conhecida, que se cumprimentava nesses encontros
e trocava comentários sobre a maçada de terem de usar a escada.
Foi nessa escada que um senhor de meia-idade chamado Xisto teve um encontro que o sacudiu
por demais. Ele trabalhava numa loja de tapetes e cortinas, e uma viúva moradora no
terceiro andar telefonara por indicação de uma amiga pedindo alguém para levar
mostruário de cortinas e fazer um orçamento. Vendedor competente, o sr. Xisto levava
também um mostruário de tapetes; quando se muda ou se instala cortinas numa casa,
geralmente cabe a sugestão de se mudar os tapetes para harmonizar o ambiente. Na escada
ele se cruza com uma moça. Aliás nem moça completa ainda; pouco mais do que menina.
Encontraram-se bem na curva do primeiro para o segundo andar, e naturalmente o sr. Xisto
se chegou bem para o lado da parede, à direita. Por um instante a menina recebeu a
claridade do vitral no rosto, nos cabelos e no busto. Tinha cabelo castanho cheio, cortado
na altura da nuca. Era esbelta e usava vestido de fustão amarelo claro com cinto também
de fustão e fivela revestida de couro. Os olhares deles se encontraram, o dele
embevecido. Ela sorriu e agradeceu apenas inclinando a cabeça. Sr. Xisto reconheceu
imediatamente que acabara de ser contemplado com a visão mais linda e pura de seus
quarenta e um anos de vida. Mesmo que não vendesse cortinas e tapetes, já estava com o
dia ganho. Com muitos dias ganhos. Sentiu-se leve, flutuante, invulnerável a decepções.
A viúva gorda, alegre, desinibida, limpa, cheirando a banho de ervas
resolvia palavras cruzadas quando o sr. Xisto tocou. Ela mesma atendeu porque a empregada
de muitos anos, Ignácia-com-gê, não se esqueça, estava lavando a cozinha.
Sr. Xisto? disse a viúva escancarando a porta. Vá entrando. Não
fique me olhando de longe. Sei que sou feia, mas não horrorosa.
É que o sr. Xisto tinha o hábito de tocar a campanhia e se afastar da porta para não
assustar quem abrisse, gesto positivo que aprendera em um curso dado por famoso vendedor
americano no hotel Glória, isso quando o Brasil ganhou a terceira Copa do Mundo.
Obrigado, dª Carolina.
Coralina. Não sei por que todo mundo cisma de mudar o meu nome. Parece que querem
corrigir meus pais.
Falha imperdoável. Estropiar o nome de um cliente. E por cima, de um cliente ainda em
perspectiva. O sr. Xisto desculpou-se, porém não exageradamente. Não se deve ser
subserviente num trabalho de venda, o subserviente não inspira confiança, dá a
impressão de querer ser simpático para vender de qualquer maneira.
Muito bem, sr. Xisto. Agora que o senhor se desculpou e eu aceitei suas desculpas,
e nem era preciso se desculpar porque o assunto é irrelevante, vamos ao trabalho. Quando
a minha Ignácia-com-gê acabar de lavar a cozinha eu mesma vou providenciar um café para
nós dois. Ou o senhor é café-abstêmio?
O sr. Xisto disse que, muito pelo contrário, era mais para café, adepto. Abriu a pasta e
foi tirando as amostras, primeiro as de cortinas. Eram fotografias grandes a cores, de
muito boa qualidade, tendo ao pé retalhos dos tecidos empregados. A sra. Coralina foi
separando as que lhe agradaram para novo exame e possível escolha. A partir de certo
momento ela notou que o sr. Xisto como que viajava, não estava ali inteiro. Dª Coralina
fez umas duas perguntas pertinentes que não o alcançaram. Resolveu sacudi-lo.
Hora de acordar, sr. Xisto. O galo já cantou. O sol já raiou.
Ele baixou à terra. Piscou. Situou-se.
Oh, dª Coralina. Me perdoe. Me distraí.
Distraiu-se ou abstraiu-se? Tem diferença, sabia? Ou comeu muito no almoço? Ou
tem pressão baixa?
Ignácia salvou-os, aparecendo para avisar que a cozinha estava liberada. Ao ver o sr.
Xisto, encabulou-se.
Este é o sr. Xisto. Formado em cortinas disse a dona da casa.
E em tapetes informou ele, voltando a vendedor.
Ignácia-com-gê, sua criada. Se me dão licença, agora vou repousar. Caso dª
Coralina não precise de mim.
Dª Coralina disse que não precisava, e desejou bom repouso.
Depois do café, não de coador, mas um cappuccino de envelope para dissolver no leite,
que o sr. Xisto adorou (pelo menos assim disse) e tomou nota da marca, fecharam negócio
das cortinas, uma grande para o quarto, duas não tão grandes para as salas. Tapete ele
não conseguiu vender porque o quarto tinha carpete de fora a fora, que dª Coralina achou
que não destoava da cortina e ele não teve argumento honesto para discordar; e os
tapetes das salas eram quase novos e dª Coralina escolhera as cortinas já pensando
neles.
Dias depois, o sr. Xisto voltou ao prédio, não para visitar a viúva, conferir medidas,
sugerir nova escolha por ter faltado algum tecido; voltou na hora da primeira visita com a
esperança de reencontrar a menina vestida de fustão amarelo claro. Não teve sorte,
voltou outras vezes.
Quando voltou com um auxiliar para instalar as cortinas, ele para acompanhar o trabalho,
dª Coralina falava ao telefone na sala de estar. Fez sinal aos dois para sentarem e
esperarem. Conversa demorada, misturada com risadas, às vezes com censuras e
recomendações. Depois de algum tempo tapou o fone e chamou Ignácia para servir um
cappuccino aos cavalheiros; e retomou a conversa. Servido o café, o ajudante pediu em
cochicho a sr. Xisto que perguntasse se podia fumar. À vontade, foi a resposta. Os dois
acenderam cigarros.
Finalmente dª Coralina desligou e veio cumprimentá-los. E se justificou.
Estava falando com a menina que criei. É modelo. Foi para Nova York no começo do
mês, contratada por uma agência de lá. Gasta um dinheirão com telefone, fala comigo
quase todos os dias. É modelo. Viajou no começo do mês. Está batendo. Quem sabe?
Deve ser bonita arriscou o sr. Xisto.
Bonita? Põe boniteza nisso, sr. Xisto. Ignácia! Traz o álbum da Ide pra eu
mostrar ao sr. Xisto. Chama-se Eurídice, mas aqui em casa sempre foi Ide.
O sr. Xisto se iluminou. Só podia ser. Mas lá longe agora... voltaria um dia?
Chegou o álbum que o sr. Xisto literalmente arrebatou de Ignácia, mas abriu com
indisfarçável reverência, depois de respirar fundo para se segurar. Eurídice em
várias poses, em vários instantâneos, naturais ou fingidos de naturais. Linda. Mas não
era a menina vestida de fustão amarelo claro, vista na curva da escada, na claridade do
vitral. Eurídice tinha cabelos negros, olhos verdes, era mais alta, pernilonga, feições
completamente diferentes. Que pena! Ou ainda bem?
Devolveu desapontado o álbum, mas felicitou dª Coralina por ter uma filha de criação
tão bonita, e desejou tudo de bom a Eurídice.
Instaladas as cortinas, o sr. Xisto voltou umas duas vezes à casa da viúva a espaços
razoáveis a pretexto de saber se ela estava contente com as cortinas, se tinha alguma
reclamação, se precisava de alguma coisa a mais; porém o que ele queria mesmo era subir
a escada. Os elevadores já estavam funcionando há muito tempo, mas ele queria reviver o
momento encantado do encontro. Numa dessas visitas, dª Coralina disse a ele no seu jeito
despachado:
Sr. Xisto, o senhor é um vendedor muito sui generis. Depois de vender sua
mercadoria, fica vindo para saber se o comprador está satisfeito ou se está arrependido.
Ou anda querendo me fazer a corte? Se for, fique sabendo que estou fora dessas batalhas
há muito tempo. Tive marido, fomos felizes, hoje sou uma viúva feliz.
Que isso, dª Coralina, não me julgue mal. É que o lema da nossa firma é:
cliente contente é cliente reincidente.
Folgo em saber. Um cappuccino?
Hoje não, obrigado. Vou ver outro cliente.
Uma tarde, tomando drinques no Eldorado Joint com uma amiga de colégio, agora psicóloga
que escrevia sobre comportamento numa revista feminina, Xisto se abriu. Contou o encontro
na escada com a menina vestida de fustão amarelo claro, descreveu com detalhes a imagem
dela, os esforços que fizera para reencontrá-la.
A amiga escutou tudo atentamente, sem interromper. Quando Xisto parou de falar, ela ficou
pensando, girando o gelo no copo com o dedo. Por fim falou.
Sabe o que aconteceu com você? Vou tentar lhe explicar. Antes um prefácio. Pelo
que sei, você é um sujeito feliz. Inteligente, simpático, boa conversa. Pequeno
empresário bem sucedido. Parece feliz. É?
Bem, sou feliz na medida em que se pode ser feliz numa terra de tanta miséria,
tantas frustrações.
Pois é. É o desassossego de todos nós que consegui' mos um grau razoável de
independência. Mas como eu dizia, você é bem, sucedido. Ficou viúvo cedo. Amava sua
mulher, e vice,versa, acompanhei essa fase de sua vida, se lembra? Você tem carro
importado, casa na serra para fins de semana, sempre cheia de amigos. E amigas. Falar
nisso, quando é que vai dar outra festa como aquela do seu aniversário em setembro?
Voltando atrás. Sabe o que lhe aconteceu naquela escada?
Estou ávido por saber. Para isso lhe arrastei para cá, a você que nunca foi
muito de beber.
E eu vim docemente arrastada. Sabe o que aconteceu na escada? Você não viu
nenhuma menina vestida de fustão amarelo. Aliás viu, mas não havia menina lá. Foi um
encontrou seu com sua ânima. Sabe o que é isso?
Estou ignaro. Lembrou-se de Ignácia-com-gê e sorriu.
É o lado feminino de sua psique. Esses encontros acontecem quando os dois lados, a
ânima e o ânimus, o masculino, estão em harmonia perfeita ou em conflito. Nesse caso,
harmonia.
É mesmo? E o que é que eu faço para me livrar disso?
Ela sacudiu o copo, sorveu o resto da bebida e disse, empurrando o copo.
Pra mim chega. Detesto uísque. Mas livrar, se por quê? Você deve é cultivar,
melhor, cultuar esse momento feliz de harmonia interior, guarde,o na memória, e volte a
ele sempre. Principalmente quando se sentir caído, se é que isso lhe acontece. E mais:
vestido amarelo. O amarelo não entrou por acaso. Faz parte. Amarelo é sol nascente, isto
é, novo dia, renascer. E é também a cor da gema do ovo. Tudo o que vive veio do ovo, se
lembra das aulas de história natura!? É a cor do ouro, que representa nobreza, valor.
Também a cor do amaranto, que não murcha. Tudo em cima, meu caro. Você não tem que se
livrar de nada, tem mais é que abrir os braços para receber mais. Solte foguetes, homem,
em vez de ficar preocupado. Consultou o relógio. Me dá uma carona? Meu
carro está na revisão.
José J. Veiga José Jacintho Pereira Veiga (1915-1999) era goiano
de Corumbá de Goiás, uma pequena vila a 150 quilômetros de Goiânia, e dizia dever a
escolha de seu nome literário à ajuda de Guimarães Rosa que, com argumentos
numerológicos e estilísticos, sugeriu José J. Veiga, na altura da publicação do livro
de estréia "Os Cavalinhos de Platiplanto", em 1959. Seu romance "A Hora
dos Ruminantes" foi publicado em 1966. Livros do autor: "Sombras de Reis
Barbudos", "A Máquina Extraviada", "Objetos Turbulentos",
"De Jogos e Festas", "A Usina Atrás do Morro", "Aquele Mundo de
Vasabarros" e "Os Pecados da Tribo", entre outros. Traduziu diversas obras
de autores estrangeiros.
Teve seus livros lançados nos Estados Unidos, Inglaterra, México, Espanha, Dinamarca,
Suécia, Noruega e Portugal. Ganhou a versão 1997 do Prêmio Machado de Assis, outorgado
pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Morreu no Rio de Janeiro,
onde viveu por 49 anos.
Texto extraído do livro Objetos turbulentos, Editora Bertrand Brasil
São Paulo, 1997, pág. 53.
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A todos, muito obrigado. Arnaldo Nogueira Júnior. ® @njo |
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