Último
texto
Encontro no Rio
Joaquim Nogueira
Agora deve ser algo entre 17h e 18h. Na tarde de domingo o largo está silencioso e
deserto como um cemitério, o vento frio e moroso se infiltrando pelas árvores. R caminha
a passos lentos por uma das calçadas, a pasta tipo executivo pendendo do braço. Vê o
carro novo, quatro portas, sem placas, estacionado junto da guia. Quando passa ao lado da
porta do passageiro, ela se abre maciamente.
Entra. Atrás do volante, T., com sua cara indecifrável.
"Não te dou a mão", diz ele, "por causa das luvas". "Acho que
é falta de educação".
"Mas nem está tão frio assim", rebate R. "Afinal, só estamos no
outono."
"Um outono típico de São Paulo. Muito frio pro meu gosto."
"Por que seu carro não tem placas?"
"Pra evitar multas de trânsito. É claro que de vez em quando um guarda me pára,
mas é melhor quebrar guardas do que multas de trânsito."
Estava explicado. Fizeram um silêncio comprido. Pelo pára-brisa impecável como uma
vidraça de banco, R vê a placa no poste da esquina mais próxima. Largo Rio de Janeiro.
"Que ironia", pensa ele. "O Rio uma cidade tão bonita, o largo tão
sujo. Põe-se a imaginar por que motivo T. havia marcado o encontro num lugar ermo
assim. Seu pensamento é interrompido pela voz tensa do outro:
E ai? Descobriu alguma coisa?.
"Bem, deu um bocado de trabalho. Só pra me infiltrar na equipe do ex-governador
levei mais de um mês. Depois fiquei uns 45 dias seguindo a equipe dele. Estabeleci um
grupo de 11
suspeitos, reduzi pra seis, no fim me limitei a um: o assessor W. (já me acostumei a
chamar
assim). Concentrei a atenção nele. Segui por toda parte, grampeei telefones, revirei
cestos de lixo em hotéis e restaurantes, interroguei pessoas. Num desses
interrogatórios, quase dancei. Dois caras suspeitaram de mim, me seguiram, foi uma sorte
ter despistado eles na rua Peixoto Gomide. Se me apanham, acho que tinham me enchido de
bala."
"Espero que tanto trabalho e tanto risco tenham valido a pena", supõe T.
"Valeram. W. tem ligações muito escusas. Com bicheiros, donos de casas lotéricas,
sites que promovem jogo de azar, gente que manipula concorrências públicas; até lavagem
de dinheiro ele faz. Está arrecadando muito, e não é pra menos. Ele precisa levantar
fundos para a campanha do chefe. O ex-governador quer ser presidente na próxima
eleição. Eu tenho provas. Estão aqui, ó.
Abre a pasta sobre o colo, pega uma fita de vídeo e entrega ao companheiro. T. revira nas
mãos como se fosse uma jóia, talvez fosse mesmo, num certo sentido, e depois enfia no
cós da calça, que ele acoberta fechando o paletó por cima. Pergunta se mais alguém
sabe da fita.
R. tem orgulho em responder: "Não". Se existe uma cópia em algum lugar.
"Não". T. dá um significativo toque no braço do colaborador:
"Fez um bom trabalho. Parabéns".
"Obrigado. Agora só falta você me pagar. No dia que me contratou para a espionagem,
disse que eu bancasse as despesas, que depois a gente acertaria. E também tem os
honorários... vamos dizer assim. Eu aceitei o acordo porque somos amigos, já trabalhamos
juntos, militamos no mesmo partido se fosse pra outra pessoa eu teria recusado.
Somando tudo, dá 18 mil."
T. enfia a mão no bolso interno do paletó. R. imagina que ele vai sacar a carteira ou o
talão de cheques. Seus olhos castanhos se arregalam com espanto e terror:
"Pelo amor de Deus, cara! Pra que essa arma?"
Joaquim Nogueira da Costa (1942) nasceu em Sena Madureira, no Acre. Advogado,
ex-delegado de polícia, usou de seus conhecimentos na área para escrever livros sobre
seu cotidiano de plantonista. É autor de Informações sobre a vítima e
Vida pregressa.
O texto acima foi extraído do caderno Mais! do jornal Folha de São
Paulo, edição de 04/04/2004, pág. 8.
|