Amor, vamos discutir a nossa relação?
Mário Prata
DISCUTIR: defender ou impugnar (assunto
controvertido); questionar.
RELAÇÃO: comparação entre duas quantidades mensuráveis.
(Aurélio) |
Há alguns anos, eu e minha mulher (hoje ex-) fomos convidados pelo cantor e compositor
João Bosco para assistirmos ao show dele no Teatro Municipal de Santo André. Como não
sabíamos o caminho, João Bosco, que ia com a Kombi da gravadora, ofereceu-se para uma
carona. Pegamos ainda o genial jornalista policial Otávio Ribeiro (Pena Branca) e sua
noiva no Hotel Cineasta no centro de São Paulo e lá fomos nós. Pena tinha acabado de
escrever um livro chamado Barra Pesada.
Quando chegamos, o teatro estava superlotado, não havendo mais espaço nem no chão. O
produtor do João nos arrumou quatro cadeiras e lá ficamos nós num cantinho do palco. No
centro, com foco de luz, apenas o João, o banquinho e o violão.
Foi quando tudo se deu. Pena Branca e a noiva começaram uma discussão no palco. Lá no
cantinho, para constrangimento meu e da Marta, enquanto João Bosco reclamava de "um
torturante bandeide no calcanhar". Da discussão partiram para um bate-boca de
baixíssimo nível. Altos brados e baixos calões. Começaram a se xingar. O que aconteceu
é que as mais de mil pessoas que lotavam o teatro começaram a desviar os olhos do centro
do palco para o canto. Ali, naquele pequeno espaço cênico, estava acontecendo um outro
espetáculo. Um casal DISCUTIA A RELAÇÃO, com o João Bosco fazendo um mero e distante
fundo musical. Foi um sucesso, para desespero meu e da Marta, meros figurantes sem fala,
porém boquiabertos. Não sei se o meu saudoso Pena Branca continuou com a moça depois
daquele dia. Sim, porque quando se começa a DISCUTIR A RELAÇÃO é, quase sempre, porque
não existe mais relação. Apenas discussão.
DISCUTIR A RELAÇÃO é um ato recente. Antigamente, lá pelos anos 60, não se fazia
isso. Quando o namorado ou a namorada chegava para o outro e dizia: "Sabe, eu estive
pensando... Pronto, o ouvinte já sabia que era o fim. Não havia mais o que
discutir. Saía cada um para o seu lado dizendo que houve (que saudades) uma
"incompatibilidade de gênios". Isso resolvia tudo.
E os nossos pais jamais discutiram a relação. Nem mesmo a relação sexual. Dava-se uma
porrada e não se falava mais naquilo. As mulheres (infelizmente) sabiam do seu lugar ao
lado do fogão, sem o fogo do amado.
Mas o mundo girou, a lusitana rodou, vieram os psicanalistas e as feministas. Sim, foram
eles que instigaram as mulheres a DISCUTIR A RELAÇÃO. Sim, são sempre as mulheres que
começam (e acabam) as discussões e as relações. Os terapeutas, porque colocam na
cabeça da gente que devemos dizer tudo que pensamos da pessoa amada para ela e não para
o melhor amigo. E as feministas, bem, as feministas...
Mas, antes de surgir a expressão DISCUTIR A RELAÇÃO, tivemos outros nomes para a mesma
desgastante peleja. "Vamos dar um tempo' não durou muito. Depois surgiu "Nossa
relação está desgastada". Por que não "gastada"?
Hoje, modismo ou não, não há casal que não DISCUTA A RELAÇÃO, pelo menos uma vez por
semana, igualando ao número de atividades sexuais. DISCUTE-SE A RELAÇÃO nos mais
variados lugares. Alguns sombrios, outros perigosos.
O melhor lugar para se discutir a relação é na sala. Está-se próximo do uísque, da
televisão que pode ser ligada a qualquer momento e mesmo da porta, para uma saída
furtiva e quase sempre covarde. E é ótimo DISCUTIR A RELAÇÃO andando em círculos, com
um copo na mão, um ouvido na fera e um olho no futebol. Sim, as mulheres adoram esta
atividade aos domingos. Eu tenho um amigo que, quando quer sair sozinho com os amigos,
diz: "Vou até lá em casa e dou um jeito de DISCUTIR A RELAÇÃO com a patroa, ela
fica irritada e eu tenho um motivo para voltar aqui para o bar'.
DISCUTIR A RELAÇÃO no quarto só tem duas saídas. Tudo terminar numa belíssima e
lacrimejante cena de amor (às vezes, até com uns tapinhas carinhosos) ou a ida de um dos
meliantes para o outro quarto. No quarto, é impossível se tratar deste assunto
impunemente. Principalmente se os dois atletas estiverem deitados. E nus. E se houver
alguma faca por perto. Vide Robbit.
No carro, é um perigo. Deveria haver multa para esses casais que colocam em risco não
apenas a vida deles, como também dos transeuntes e demais carros. DISCUTIR A RELAÇÃO
dentro do carro sempre acaba em trombada na cara. E quem está dirigindo leva sempre a
pior. Ou então propor um rodízio. Segunda, não discutem casais com final 1 e 2. Terça,
3 e 4. E assim por diante.
Agora, não há nada mais desagradável do que DISCUTIR A RELAÇÃO por telefone. É um
horror. Geralmente é de madrugada. Longos silêncios... "Você está me ouvindo?
Você está aí?" A gente não vê os olhos da outra pessoa, o sarcástico
sorrisinho, a pequena lágrima rolando. Sem falar na conta do telefone.
E no restaurante, vocês já repararam? Sempre tem alguns casais que chegam calados, comem
calados e calados saem. Um não dirige a palavra para o outro. Ledo engano. Eles estão,
em silêncio, DISCUTINDO A RELAÇÃO. Acho uma covardia DISCUTIR A RELAÇÃO em silêncio.
Eles não falam nada. Ela fica quebrando palitos e ele rasgando o guardanapo de papel.
Imundando o restaurante.
Já os mais modernos DISCUTEM A RELAÇÃO via Internet. Ele digita um disparate para ela
na Vila Madalena, o texto vai para um satélite, dali vai para Columbus (Ohio, USA), volta
ao satélite, baixa na central do Rio de Janeiro e, finalmente, entra no computador dela
em Pinheiros, a uns 500 metros de distância. Depois é a vez dela fazer o mesmo. Coitado
do satélite que tem que decifrar aqueles palavrões todos. Em português, é claro!
Mas o pior não é DISCUTIR A RELAÇÃO. O pior é pagar fortunas a um profissional,
sentar-se numa poltrona ou divã e ficar ali, durante 50 minutos, por intermináveis
semanas, meses a fio, anos seguidos, repetindo tintim por tintim como foi a nossa última
conversa com o ser amado, fazendo um esforço danado para lembrar fala por fala, todos os
diálogos. E o terapeuta lá, com aquele olho de peixe morto, caído, quase bocejando,
ouvindo, pela oitava vez, naquela mesma tarde, a mesma nauseante história de amor.
Sim, porque com ele a gente não DISCUTE A RELAÇÃO. Discutimos, no máximo, o preço. Da
nossa dor.
Texto extraído do livro 100 crônicas de Mário Prata, Cartaz Editorial
São Paulo, 1997, pág. 163.
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Prata visitando "Biografias".
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