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O gordinho e a menina de
rosa
Maurício Cintrão
Deixei muitos pedaços por aí. Uso como cola as lembranças que voltam. Com elas,
reconstituo minhas andanças. E assim, por exemplo, quando ouço as músicas lentas da
infância. Imediatamente, fico sem jeito, meio ridículo. Volto a ser aquele menino que ia
ganhar coragem para tirar a menina de vestido rosa para dançar, mas que nunca tirou.
Tentava, mas não conseguia. Puxa, eu juro, tentava mesmo!
Gastei muitos bailes no Clube Atlético Ypiranga para criar coragem, levantar, seguir,
andar determinado em direção à menina de vestido rosa... Mas, ali, na hora da verdade,
desviava. Eu sempre desviava. Via um ET no salão, um morcego verde na cortina, uma
minhoca jogadora de basquete... e fugia. Não sei se ela notava. Eu queria tirá-la para
dançar. Queria, sim! Só não conseguia. Jamais consegui.
Acho que ela também não conseguiu, porque não me lembro de tê-la visto dançando com
ninguém. Estava lá, no mesmo lugar, com o mesmo vestido, sentada no canto, esperando
pelo bailarino que não chegou. Era minha parceira, havia de ser, meu Deus, sempre foi.
Minha parceira que não foi.
Cresci, mudei do bairro e nunca mais vi a menina de rosa.
Até hoje tenho altos grilos para dançar. Apesar dos whiskies quebra-gelo e das
vezes em que balancei ao som dos bailes da vida, nunca pude dançar inteiramente. Creio
que meu pedaço dançarino ainda vaga lá pelo salão do clube, feito alma penada,
vacilante, seguindo em direção à cadeira que já não tem a menina de vestido rosa.
Não sei se outras pessoas já experimentaram isso. Ao ouvir músicas dos tempos das
domingueiras, tenho a estranha sensação de visitar um museu. Eu as sinto como sendo de
um passado remoto. Feito as peças que pertenceram a alguém de dois ou três séculos
atrás. As músicas lentas da meninice me fazem viajar, como se houvesse dançado com a
menina de rosa, mas nunca dancei.
Porventura, se você for dessa época das domingueiras do Ypiranga e conhecer aquela que
já foi a menina do vestido cor-de-rosa, por favor, não fale de meu medo. Fale apenas que
o par estava lá, sim, e a admirava, encantado. Diga que ele quase chegou, mas perdeu para
o ímpar das circunstâncias. Fale que o menino gordinho do outro lado do salão dançava
com ela de coração. Coração bailarino que, ainda hoje, ensaia passos elaborados ao som
dos Bee Gees.
Maurício Cintrão é cronista e jornalista. Colabora com vários jornais e
revistas do Interior de São Paulo, além de sítios de literatura na Internet. Trabalha
na assessoria de Comunicação Social da NovaDutra, empresa que administra a Via Dutra,
principal ligação rodoviária entre Rio e São Paulo. Antigo freqüentador das páginas
do Releituras, lança agora, por ocasião da 18ª Bienal Internacional do Livro de
São Paulo, o livro "O gordinho e a menina de rosa", Editora Protexto - Curitiba
(PR), 2004, do qual extraímos a crônica acima (pág. 11). O livro foi prefaciado pelo
escritor Mario Prata.
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