Último
texto
Achadas e Perdidas?
Marina Colasanti
Uma bala perdida alcançou o ator Older Cazarré no sono, e
o matou. No dia 1.2 do mês, uma menina de nove anos tinha sido ferida por uma bala
perdida, quando brincava em sua casa, em Vila Isabel (sua casa estava sendo atingida pela
terceira vez). E no dia seguinte, em Costa Barros, cinco crianças foram feridas pelas
sobras de um tiroteio entre PMs e,traficantes. O mês em nada se diferencia dos meses
anteriores. E, como todos os meses no Rio de Janeiro, tempo de safra das balas perdidas.
Pergunto-me por que continuamos usando essa expressão "bala perdida". Afinal,
perdido é aquilo que sumiu, que não mais conseguimos encontrar. E as balas perdidas
sabemos muito bem onde vão parar. Só no prédio de Cazarré a polícia recolheu cinco
delas, sendo que uma estava encravada na cabeceira da cama do subsíndico José Carlos
Freire, a um palmo da sua cabeça.
Perdido é também aquilo que foi destruído, que é irrecuperável. Mas as balas perdidas
são recuperabilíssimas; para reavê-las, basta afundar o canivete na parede de uma casa
pacífica ou na cabeceira de uma cama, e mergulhar o bisturi na carne. E certamente não
foram destruídas. Destruídos são a pele, o osso, o órgão. Destruídos são a
segurança. E a vida.
Usa-se a palavra "perdida" também no sentido de distante, longínqua. Mas bem
gostaríamos que as balas perdidas estivessem distantes. Antes aparentemente longínquas
porque limitadas às áreas de banditagem, estão se aproximando a cada dia, varando
nossas vidraças e nossa serenidade. Bala perdida, hoje, é justamente aquela mais
próxima do que todas as outras, a que nos atinge.
Perdida significa ainda prostituta, a que, por dinheiro se concede. E mais uma vez a
palavra não encaixa nessas balas que, como pipas negras, cruzam nossos ares. Bala
prostituta não é aquela que atinge quase ao acaso pessoas de bem, pessoas que nada têm
a ver com as transações nefandas em cujo nome a bala é disparada. Bala prostituta é
aquela que cumpre sua tarefa, que mata por dinheiro, e que só por dinheiro se
"concede".
E, ainda dentro do mesmo sentido, perdida quer dizer aquela que "sai do bom
caminho". Mas como aceitar que o percurso de uma bala, visando a morte, seja
considerado um bom caminho? Ainda que saia da arma de um traficante para o peito de outro
traficante ou mesmo da arma de um policial para o peito de um meliante, a bala traça
sempre o pior de todos os caminhos. E repugna considerar bom um caminho da morte, apenas
porque obedece à mira. Não existe bom caminho para as balas. Nem na guerra, nem na
caça. E muito menos no cotidiano de uma cidade.
Assim também a consciência hesita em aceitar seu sentido como "errada". Não
apenas porque não podemos concordar com a existência da bala certa, mas porque, se é
verdade que a bala perdida errou o alvo, é igualmente verdade que acertou sua função.
Pois quem fabrica o projétil e o enche de pólvora não está lhe incutindo um alvo, mas
apenas dando-lhe a capacidade de penetrar, rasgar e explodir, que são sua razåo de ser.
Bala errada, e portanto bala perdida, é para seu fabricante a que se perde n~ grama, sem
condições de ferir ninguém, nem hoje nem nunca. E a bala que desperdiça seu poder
mortífero.
Nem lhe cabe o sentido de "aflita" ou "ansiosa", que o dicionário
registra. Uma bala nunca está ansiosa. Uma bala não hesita, não treme. Uma vez
disparada, é objetiva e direta. Ansioso pode estar aquele que aperta o gatilho. E aflito
fica quem recebe o tiro, ou quem vê o próprio filho atingido enquanto brinca no quintal
de casa.
Há sentidos, porém, que se lhe aplicam. É certo, sim, dizer que a bala é perdida,
porquanto "pervertida". A bala que fere ou mata aquele que apenas cruzou seu
percurso, como se cruza uma linha de trem, é certamente mais pervertida do que a
pervertida bala que mata a vítima visada.
E é "amoral" essa bala. É amoral porque mata pessoas inocentes
embora as culpadas também não devessem ser mortas. É amoral porque não obedece sequer
à questionável moral do submundo, porque escapa à moral da guerra que a dispara. E é
amoral porque dela ninguém pode se defender. Quem parte para um duelo sabe o que
busca, quem parte para a guerra sabe ao que vai de encontro, mas quem dorme em sua cama
não sabe o risco que corre.
Perdida quer dizer ainda "sem esperança ou salvação". Uma cidade cruzada por
balas perdidas é uma cidade sem esperança ou salvação. Mas as balas perdidas podem
tomar-se uma espécie em extinção, quando a sociedade põe um basta nas balas achadas.
(1992)
Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e
desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e
histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota
de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui
entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher
(que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal
delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis
e a moça do labirinto de vento. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente
é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco
Rio de Janeiro, 1996, pág. 70.
|