Último
texto
Ao
ventre da alma
Marília Trindade Barboza
As fotos andavam escondidas, fora da vista, sumidas, para evitar
lembranças, sofrimento, esperança. Pois foi só tocá-las e voltou
tudo, memórias saídas do escuro, como pedras preciosas sobre negro
veludo. Aliás, mesmo sem fotos, você volta. A verdade é que nunca se
foi. Eu saio, ensaio; mudo de casa, crio asa; mudo de cidade, que
maldade; mudo de país, não estou feliz. Só não mudo de você, por
quê? Cansei de fingir que sou dura, que não sofro, que curei. Não
vai passar, eu sei. Sou, para sempre, rainha de um só rei.
Sabe por quê? A capacidade de ser feliz que senti ao seu lado foi
algo tão violento que é impossível esquecer...ou substituir. Fui tão
completa, tão preenchida, tão total que chegava a doer. Não faltava
nada, eu não queria mais nada além de respirar...você. Respirar o ar
que você expirava, beber a água que você suava, comer...não, nem era
preciso comer nada além da sua presença. Eu me alimentei de você.
Talvez tenha ido com sede demais ao pote. Antropofagia? Quem sabe? A
capacidade de um sagitariano se arremessar sobre o que ama é
absolutamente indescritível!!! Se arremessar da montanha, se jogar
no espaço, virar bicho, virar ave, virar deus. Fazer milagre, beber
vinagre e achar que é vinho. Que é champanhe francês!!!
Vivi ao seu lado o dia mais feliz da minha vida — meu Deus, quantos
são os seres humanos que sabem qual foi o dia mais feliz de suas
vidas? O dia em que eu quis morrer, pois sabia que nada haveria de
mais importante e de profundo em minha existência do que aquele
momento.
Estado de graça... como sei o que é isso!!! Chegar pertinho da
morte. Mais um pouquinho, você vai, sucumbe, não resiste, o coração
pára. A felicidade plena pode ser letal. Naquele instante, naquela
cidade, naquele quarto de hotel, soube claramente que o meu momento
era aquele. E as realizações anteriores, que pareciam tão efetivas,
tão integrais? Viraram pó! Na hora. Em silêncio, falei com Deus e
pedi: “Senhor Deus, me mata agora, ou vou correr, o resto da vida,
atrás desse momento”. Deus não me atendeu. Sobrevivi. E é o que
faço, ainda hoje.
Enquanto durou, que entrega! Com totalidade. Feito mãe parideira,
gente ou bicho (há diferença, quando se trata de mãe?) que, apesar
do amor e do medo, abre as pernas e, aos gritos de dor e êxtase,
joga o filho no mundo. Que nem peito materno que se entrega, sem
lascívia, à boca da cria. Igual à ingênua freirinha que renuncia ao
amor do homem e se oferece ao orgasmo divino. Ou como língua que,
sensualmente gelada, continua se dando ao sorvete. Um ser se doando
a outro sem qualquer restrição. “Toma, faz o que quiser. Usa e
abusa. Pode até jogar fora. É tudo seu”.
A plenitude se desfez no éter, antes de se completar o ciclo. Fui
colhida pela morte. Não a minha não a sua. A morte da minha crença
na nossa capacidade de ser feliz. O pé na terra. A falta de
relacionamento entre a terra e o pé. Você se foi e me levou consigo:
vísceras, órgãos vitais, neurônios, metros cúbicos de ar, litros de
sangue. Matéria orgânica que, se fosse encaminhada a um teste de
laboratório para se descobrir a que tipo de ser pertencia, gente ou
bicho, possivelmente o resultado seria: ameba...
Costumo sorrir em silêncio dessa literatura, a séria ou a leviana,
sobre a completude da mulher. Essa gente não sabe de nada! Bastava
olhar pra você que eu gozava até com os fios do cabelo. Com seu
discreto estrabismo. Com essa pele morna e lisa que eu não cansava
de acariciar. A boca...não era uma boca, era o paraíso. A voz, os
abraços, os dengos. Orgasmos múltiplos. Põe múltiplos nisso!
Infinitesimais... Cristalizados nas tais fotos que, hoje, escondo
com medo de sofrer. Está tudo ali, no meu olhar pra você, cadela
olhando o dono com unção. Momentos que deveriam ter-se cristalizado
num filho nosso. O mundo merecia esse filho, fruto de uma cama feita
para ser a origem do mundo. Era a cama que o criador quis dar ao
homem e ele não teve competência para perceber. A cama e a mesa.
Como gostávamos de comer, em todos os sentidos possíveis, tudo
farto, suficiente, prazeroso. Tudo com tesão.
Será que pra você a dose foi forte demais? Excedeu suas forças, sua
capacidade, seu momento de vida? Às vezes, penso que sim. Só eu
estava pronta. Você, não. Mas eu precisava entender o porquê. Para
mim, foi tudo na medida certinha. Se o seu número fosse o mesmo,
aquele instante não teria sido apagado da história da humanidade.
Talvez eu não tivesse percebido algumas nuances. Lembro-me que,
quando nos amávamos como loucos, às vezes você se feria. A fricção
de nossos corpos esfolava o seu. Quem sabe sua alma também se
ralava? Meu corpo ficava pleno, saudável, exultava. Em mim, ele e a
alma estavam prontos, íntegros, confiantes.
Então... A explicação para o fim de tudo foi tão completamente sem
explicação... Não foi? Achava que nada poderia acabar conosco. Hoje,
admito que um discreto e eventual desequilíbrio na emoção de ambos,
que nem percebíamos, pudesse ter a força de um vírus mortal... O meu
“nós” se confundia com a vida. Quando acabou, morri...Você continua
vivo?
Esta pessoa que escreve, fala, trabalha, se relaciona com o mundo é
apenas uma sobrevivente, um egum, um zumbi. Espírito recolhido às
esferas celestiais — ou às cavernas do inferno, sei lá — o corpo
ficou por aí, destituído da alegria essencial, do prazer. Na
juventude, se impasses ou dubiedades exigiam-me decisão, minha mãe
alertava: “Sua alma, sua palma”. Corri o risco, mãe.
Borboleta perdida no túnel do tempo, reentranhei, regredi, sou
lagarta outra vez. Recolhida, como feto, ao ventre da alma. Com a
minha história presa na mão fortemente fechada.
(in "Os Passos da Paixão", no prelo)
Marília Trindade Barboza da Silva nasceu na cidade do Rio
de Janeiro, no bairro de Vila Isabel. Formada em Letras e Direito, é
Mestre em Lingüística e Doutora em Ciência Política. Especialista em
Cultura Popular, autora de mais de 15 livros, vários deles
consagrados pela crítica especializada (biografias de Pixinguinha,
Cartola, Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Caymmi, Luperce
Miranda, Carlos Cachaça etc.), de ensaios sobre localidades do Rio,
como a Mangueira e os subúrbios de Madureira e Irajá, ou ainda o
Vale do Rio Paraíba, berço da cultura afro-descendente. Produziu
discos, documentários em vídeo e shows, dirigiu espetáculos
musicais.É compositora (parceira dos violonistas João de Aquino e
Daniel Júnior e dos compositores Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho,
Nelson Sargento, Argemiro Patrocínio, entre outros).
Atuou no magistério em todos os níveis, tendo sido professora no
Colégio Pedro II, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da PUC,
da Universidade Gama Filho e da Universidade Santa Úrsula, além dos
colégios Santo Ignácio, Santa Úrsula e várias Escolas Municipais e
Colégios Estaduais do Rio de Janeiro.
Em 1988, produziu com o jornalista José Alberto Braga a Exposição
“500 Anos de Brasil, Mostra de Humor Luso-Brasileiro”, Cascais-RJ,
de maio a julho de 2000, exibida também nas cidades de Recife,
Brasília, Piracicaba, São Paulo, Belo Horizonte, e no Museu Nacional
da Imprensa, no Porto, em Portugal, com a participação de Ziraldo,
Millôr Fernandes, Aroeira, Lailson, Chico e Paulo Caruso e Jaguar
(pelo Brasil), além dos 7 maiores cartunistas de Portugal. No mesmo
ano, também em Portugal, promoveu o primeiro encontro entre os
sambistas das localidades de Sacavém, Sesimbra, Ovar e Funchal,
visando a criação da 1ª Liga das escolas de samba portuguesas.
Novamente com o jornalista José Alberto Braga, organizou o 1º
Desfile Conjunto das Escolas de Samba Portuguesas, quando o
Embaixador José Aparecido de Oliveira promoveu a 1ª Cimeira dos
Países de Língua Portuguesa, em 1994.
Desenvolve trabalho de pesquisa das raízes das músicas portuguesa,
africana e brasileira (Projeto Reflexões Lusófonas) em parceria com
pesquisadores de diversos países da CPLP - Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa.
Por cinco vezes, obteve 1º lugar em Concurso Nacional de
Monografias, realizados pela Funarte, além do Prêmio Nacional da
Cultura, do MinC, a Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal/RJ,
em 2001, e a Medalha Tiradentes, da A.L.E.R.J, em 2003.
Bibliografia:
Filho de Ogum Bexiguento - com Arthur Loureiro de Oliveira Filho,
Edições MEC/FUNARTE, 1979, 209 páginas, Menção Honrosa no Concurso
Nacional de Monografias, RJ (Biografia de Pixinguinha); 2ª Edição
Editora Gryphus, 1997;
Paulo da Portela, traço de União entre duas culturas - com Lygia
Santos, Edições Mec/Funarte, 1980, 243 páginas, 1º lugar no Concurso
Nacional de Monografias, RJ (estudo sobre a formação das escolas de
samba) 2ª Edição FUNARTE, 1994;
Silas de Oliveira, do Jongo ao samba-enredo - Com Arthur de
Oliveira, Edições Mec/Funarte, 1981, 145 páginas, 1º lugar no
Concurso de Monografias do Projeto Lúcio Rangel, RJ;
Fala, Mangueira - Com Arthur de Oliveira e Carlos Cachaça,
Livraria José Olympio Editora, 1981, 165 páginas, RJ;
Cartola, os Tempos Idos - Com Arthur de Oliveira, Edições Mec/Funarte,
1983, 220 páginas, 1º lugar no Concurso de Monografias do Instituto
Nacional de Música, FUNARTE, RJ – 6ª Edição Editora Gryphus, 2008;
Caymmi, som-imagem-magia - Com Vera de Alencar, Edição Fundação
Emílio Odebrecht, 221 páginas, apresentação Jorge Amado, RJ;
Pelos Caminhos do Choro, in Notas Musicais Cariocas, Editora
Vozes, 156 páginas, 1986, RJ;
Alvorada, um Tributo a Carlos Cachaça, Edições Mec/Ibac, 1989,
108 páginas, RJ;
João Cândido, o Almirante Negro (com Martinho da Vila, Arthur de
Oliveira, Aldir Blanc e Ricardo Cravo Albin), Editora Gryphus, 250
páginas, 2000, RJ;
Luperce Miranda, o Paganini do Bandolim – Prêmio de Bolsa de
Pesquisa na FUNARTE, DaFonseca Comunicação, 255 páginas, RJ, 2005;
Previdência Social Brasileira - Com Arthur de Oliveira, Dataprev,
MPAS, 1980, 70 páginas, RJ;
Inflação, indexação e Correção Cambial - Políticas alternativas e
dificuldades institucionais - Tese de conclusão do Curso da
Escola Superior de Guerra, ESG, 1985, 90 páginas, RJ;
Consciência Negra – Contextualização e análise dos Depoimentos de
Grande Othelo, Haroldo Costa e Zezé Motta – MIS Editorial,
janeiro/2002;
Carnaval, desenhos de Lorenzo Matotti (texto e coordenação
editorial) , Casa 21, 2004, 70 páginas, RJ;
Outras edições:
Música Popular Brasileira – de Cabral à atualidade – MIS
Editorial,– acompanha CD Duplo, 182 páginas, RJ, janeiro/2001- 2ª
edição em 2008, pela Editora Planeta/Lisboa.
Escolas de Samba de Portugal, o Tripé Afro-Luso-Brasileiro -
brevemente pela Editora Planeta/Lisboa.
Os Passos da Paixão – Contos – No prelo
Em preparo:
Coisa de Preto – iorubás e bantos na formação musical do Rio de
Janeiro
A Cartilha do Afro-descendente
Cartola, de A a Z
Dona Ivone Lara, a primeira dama do Samba
Martinho, da Vila, da Cidade e da Serra
Leia o texto. Compre o livro.
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