ele e ela
Ana Claudia Calomeni
se conhecem num bloco de pierrôs em que ela é a única colombina. Ela bebe cerveja. Ele,
caipirinha. Se vêem, sorriem, se beijam.
Quando nos conhecemos ele disse que gostou da minha ousadia. "Ousadia? Mas esse
cara nem me conhece", pensei, mas aceitei a cantada. Na verdade, achei aquele elogio
o máximo! Ficamos juntos até o bloco se desfazer no Largo dos Guimarães.
Ele não consegue parar de pensar nela. Gosta de imaginar qual é a forma do seu corpo
sem fantasia. Passa horas olhando vitrines, tentando adivinhar em que tipo de roupa ela se
encaixa melhor, o tamanho, o comprimento...
Um dia o vi olhando uma vitrine de roupas femininas. Admirava os manequins como se visse
mulheres no lugar dos bonecos. Parei na sua frente, ele me olhou como quem não
acreditasse, sorriu leve, comentou algo sobre "...a ressaca daquele dia", falou
mais algumas coisas que eu não consegui decifrar, muito menos tentei entender. Meu
pensamento estava preso na imagem dele refletida na vitrine. Escrevi num papel meu
telefone. "Não...", ele disse, e eu recuei, "...esse não é o seu tipo de
roupa", continuou, esticando o braço, e eu voltei à posição original, como se
nada tivesse sido dito. Ele dobrou o papel sem reparar que o meu nome não estava lá. Me
beijou no canto da boca.
Ele telefona para ela, sentindo um aperto desconjuntado no peito. Não haviam dito
seus nomes, era como se se conhecessem há muito...
Acordei com a voz dele na secretária eletrônica cantando "colombina onde está
você, eu vou dançar o iê ie iê. Me liga". Eu corri pra atender, mas não deu
tempo. Deixou um número. Nos encontramos no Largo. "Não consigo parar de pensar em
você. Quero continuar o que ainda não começamos", ele disse me olhando fundo. Eu
sorri. Sempre gostei de paradoxos.
"Te amo", ela diz, mas ele não acredita, mesmo sabendo que ela não mente.
Ela faz declarações de amor com a mesma tranqüilidade que acende um cigarro depois do
café ou come um prato de filé com fritas. Aos cinqüenta anos um homem já tem opinião
formada sobre o que é o amor e ele sabe que uma pessoa capaz de dizer te amo de forma
tão natural apenas pensa sentir o que diz. "Você acha que me ama", ele
responde. Ela rodopia o corpo leve, inescrupuloso, e sai, batendo a porta do apartamento.
Na esquina da rua se vira e acena para ele, que recua um passo da janela, se protegendo
atrás das cortinas. Ela espera alguns segundos, ele reaparece e acena de volta com um
gesto duro e frio como um espasmo.
Ela levanta de leve os ombros, dá meia-volta e dobra a esquina.
Ele se senta na poltrona perto da janela, acende um cigarro e olha a fumaça.
Ele achava que me conhecia. Dizia que eu pensava que o amava. Acreditava me conhecer
mais do que eu mesma. Sabe como é, coisa de homem que acha que já viveu tudo. Na época
ele preparava uma tese de mestrado sobre o amor. Algo sobre manifestações amorosas à
luz da sociedade pós-moderna. Acho que ele ia ter um bocado de trabalho. Na primeira vez
que transamos, ele jurou que me amaria pra sempre se eu continuasse fazendo sexo oral nele
daquele jeito. Ali eu percebi que ele ia ter que pesquisar muito pra desenvolver uma tese
convincente. Eu não acho que um homem que jura amor eterno a uma mulher só pelo jeito
que ela chupa ele entenda realmente do assunto. Talvez ele só entenda mesmo de sexo oral.
O que, cá pra nós, não deixa de ser uma vantagem.
O cheiro dela. É um cheiro que ele não sabe explicar, um cheiro impossível, que ele
só sente quando não sente direito, só percebe quando não presta atenção, misturado
com cheiro de rosa, incenso, creme hidratante e chiclete de canela, que ela gruda nas
costas da mão quando toma suco de beterraba com laranja. "Pra saúde", ela diz,
brindando o copo num outro imaginário, e bebe o conteúdo quase de um gole só, de olhos
fechados para não sentir o gosto. Abre um sorriso satisfeito, desfaz a careta refletida
no vidro do copo, leva a mão à boca e resgata o chiclete ainda úmido.
Um dia peguei na mesinha de cabeceira da cama dele uma matéria de jornal: "Machos
e fêmeas: o poder do cheiro nas relações amorosas". Ali explicava que homens mais
velhos se interessam por mulheres mais novas por causa do cheiro delas. É que essas
mulheres, como as fêmeas de qualquer espécie, exalam um cheiro mais forte, e isso
compensa a perda progressiva do olfato dos homens mais velhos, o que também acontece aos
machos de qualquer espécie. Achei aquilo tudo muito primata pro meu gosto, mas entendi
porque ele ultimamente andava cheirando as minhas calcinhas.
Os dois primeiros anos deles juntos são ótimos. Ele gosta da juventude dela, do seu
jeito apressado de encarar as coisas. Olha para ela e se lembra dele.
Sabe quando uma pessoa te olha tão através de você que alcança aquilo que está lá
atrás e nem você enxerga mais? Pois é, não foram poucas as vezes em que ele me olhou
assim. Uma vez eu virei pra trás e vi que não tinha ninguém. Achei divertido, mas foi
aí que comecei a entender sem ainda saber: eu já estava só.
"Sinto uma certa pressa", ela diz. "De quê?", ele quer saber, mas
ela não sabe responder. Ele gosta de palavras, explicações, e algumas ela não sabe
dar.
Eu gostava da maturidade dele. Daquele jeito pouco apressado de olhar o mundo. Os
cabelos grisalhos, os olhos por trás dos óculos, a calma, principalmente a calma. Uma
calma típica dos que sabem e não têm medo disso, dos que sabem que nem sempre foi
assim. Era aquela calma dele que eu procurava, mas eu tinha pressa, muita pressa de
encontrá-la. E foi justamente aquela calma que um dia começou a ocupar espaços
desconhecidos em mim e me revelou uma solidão imensa, só minha: a solidão de mim. Tive
medo, muito medo, do silêncio. Era como se de repente não houvesse mais nada além das
paredes daquele apartamento.
Ele a abraça. Eles transam. Ela vai embora, levando a imagem dele refletida na
vitrine.
Enchi a casa de espelhos, na esperança de que muitos de nós ocupassem espaços nos
quais não conseguíamos mais circular. Eu já não conhecia mais os caminhos, não era
capaz de me distinguir daqueles reflexos, não sabia mais que direção tomar. Minha vida
virou um labirinto povoado de fantasmas de nós dois. Quando os aços dos espelhos
passaram a ser minha única realidade, fui embora.
Hoje é segunda-feira de carnaval. Pierrôs, colombinas, melindrosas, pandeiros e
cuícas se misturam no Largo dos Guimarães e eu aqui, relatando um fato a fria
distância, como se a história nunca tivesse sido minha. Faz tempo que ela foi embora e
ainda sinto uma saudade alucinada de nós. Um fantasma vira aquela mesma esquina ali
embaixo há meses e quanto mais me escondo atrás das cortinas, quanto mais cigarros
acendo tentando moldar com a fumaça uma outra imagem que não a dela, mais me aflijo
neste apartamento incompleto. O apartamento está em pedaços. Os espelhos aumentam um
vazio que parece não ter fim, perpetuam este espaço no qual me perco e eu aqui, sentado
nesta poltrona, desejando vê-la surgir de dentro deles e dizer que tudo não passou de um
inocente pavor.
Outro dia, era uma segunda-feira de carnaval, cuícas, pierrôs, pandeiros, colombinas,
melindrosas, se misturavam no Largo dos Guimarães. Senti saudades. Às vezes tenho
vontade de voltar e explicar o pavor que senti.
E-mail: anacalomeni@gmail.com
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