Olhos vermelhos
Ana Célia Ellero
Depois de rolar várias vezes na cama tentando inutilmente dormir,
Lúcia se levantou e foi à cozinha vasculhar o armário procurando
encontrar biscoitos doces.
Sem sucesso em sua busca e sentindo seus olhos pesados, dirigiu-se
ao banheiro e mirou-se no espelho na intenção de verificar como os
mesmos estavam. Assim que a iluminação tomou conta do pequeno cômodo
da casa que era composto por um vaso sanitário, um chuveiro exposto
sem a proteção de um box e um pequeno jogo de pia e espelho, ela
olhou para fora da janelinha que se abria deste banheiro para o
telhado da casa vizinha.
Lá estava ele: branco, raquítico, alerta, olhos vermelhos — um gato
albino.
O primeiro sentimento que a acometeu foi o de a mais profunda
repulsa. A imagem daquele ser lhe era miserável, o resumo da
inadaptação, do erro genético, do caminho oposto ao do comovente
movimento harmonioso da Natureza.
Lúcia se esforçou para conseguir continuar a encará-lo e ambos
permaneceram imobilizados por algum tempo. Depois desse momento de
paralisia, o passo, enfim, foi dado pelo mais forte daquele
encontro: saltando para o outro lado do telhado, o gato desapareceu.
Diante disso, ainda inebriada pela mescla da imagem bizarra do gato
ao estado de insônia que sempre a deixava confusa, Lúcia voltou para
seu quarto. Sentou-se na cama e passou supor, então: o gato albino
deveria se esconder o dia todo para não ser agredido pela
luminosidade do sol. Sairia somente à noite para se alimentar.
Caminharia pela madrugada fuçando restos, sempre sozinho para que
não tivesse que disputar o lixo com os outros animais fuçadores de
lixo. Devido a sua compleição física, teria dificuldades em arranjar
comida. Em uma disputa pelo alimento, a desvantagem sempre seria
sua, já que não tinha forças para lutar. Difícil era receber a
empatia de algum insone ou de um notívago disposto a lhe oferecer
comida. Sempre expulso, carregaria pelas ruas escuras da cidade a
sua imagem repugnante. Com sorte, após a batalha para adquirir pelo
menos o mínimo que o permitiria estabelecer-se em pé, o herói da
sobrevivência, voltaria para seu bueiro, com seu pequeno quinhão no
estômago, sempre com suas costelas a se destacar, onde permaneceria
até que a luz do dia não ferisse mais seus olhos.
Depois de se deixar envolver por essas breves, porém, intensas
conjecturas, Lúcia sentiu-se impregnada de algo que lentamente se
aproximava de uma manifestação emocional, cuja palavra mais próxima
no sentido de descrevê-la seria “empatia”.
Esfregou seus olhos agressivamente, pois a falta de sono fazia com
que os mesmos ficassem irritados. Sentiu-os como se os mesmos
estivessem vermelhos e, com isso, uma comparação entre ela e o gato
albino passou a configurar-se: também ela se considerava inapta
diante da vida, também ela era a esquálida diante das pessoas que
lhe cercavam. O cotidiano lhe era uma agressão: durante seu
trabalho, concentrava-se apenas em realizar o que lhe era
solicitado, buscando não se embrenhar em conversas que considerava
tolas ou fazer parte da estrutura que exigia a competição
selvagemente felina entre os seus.
Acostumara-se a essa sua condição e convivia com uma enorme
comiseração por si mesma, todos os dias. Com a sensação de ser um
grande blefe da vida, voltava para casa (bueiro?) com o alívio de
mais um dia ter chegado ao fim.
Lúcia percebeu, porém, nesse momento que algo fundamental lhe
diferenciava do gato albino. Este, em meio a sua luta para manter-se
vivo, demonstrou uma solidez em seu ser não físico que pôde
transmitir no olhar enviado a ela antes de saltar e ir embora. Olhar
contrastante de um ser de pulsão forte em corpo frágil. Lúcia não
tinha as estratégias de sobrevivência que pudessem torná-la também
uma heroína em seu mundo, transformando sua inconsistência e seu
desencanto em algo que a pudesse fortalecer diante da vida.
Ainda hoje, Lúcia busca todas as noites encontrar o gato albino no
telhado ao lado de seu banheiro, com a expectativa de quem aguarda
uma aparição divina. Pensa que se isso acontecer, ela poderá levá-lo
para sua cama e oferecer-lhe leite morno. Poderá abraçá-lo,
acariciá-lo, encará-lo em seus olhos vermelhos e aprender com ele.
Ela deseja intensamente que o gato albino volte, mas ele ainda não
mais a visitou. Resta a Lúcia a fantasia de que, naquela noite em
que se viram pela primeira e única vez, ela o acolheu para sempre
como seu.
E-MAIL:
anaceliae@yahoo.com.br
BLOG:
|