Os olhos do abutre
Alexandre C. Leite
A Edgar Allan Poe
Andava ?tarde pela Av. Rio Branco quando intuiu que alguém o seguia. Subitamente, girou
a cabeça para trás pressentindo que segurariam seu braço. Não havia ninguém, além
das centenas de rostos desconhecidos que formam o monstro disforme e imprevisível que
chamamos de multidão.
Continuou caminhando, apressou o passo. Sentia-se zonzo, seus sapatos pisavam sobre uma
calçada inconsistente, o concreto nunca antes lhe aparentou ser tão abstrato.
Convencia-se de que não precisava se preocupar, muito tempo se passara desde que executou
a tarefa que lhe cabia. O destino ?uma força que se cumpre, mesmo que a fragilidade do
arrependimento venha depois, assim ele pensava...
A primeira vez que viu Rose, naquele sobrado da Rua do Acre, todos os seus sentidos foram
tomados por uma paralisia angustiante. O universo congelou quando ela se aproximou e
encostou o corpo quase desnudo ao seu. Ela tocou-lhe o rosto e perguntou o porqu?dele
estar sozinho e com aparência triste num canto do salão. Ele ficou mudo, não conseguiu
emitir nem sequer um som; ela sorriu, encarou seus olhos profundamente, deu-lhe um beijo
leve nos lábios e se afastou.
Uma mulher havia lido sua alma, uma meretriz da Praça Mau?o havia decifrado, ele sentia
um misto de nojo e surpresa. A lembrança de Rose era a obsessão dos seus dias, não
podia mais pensar em nada que não rodasse em torno da daquela imagem feminina que lhe
surgiu tão intrigante.
Ele continuava andando, tinha certeza que alguém o seguia...
Como poderiam ter descoberto o que fez? Tudo saiu como planejara, tudo perfeito!
Olhava em volta, na tentativa de identificar seu perseguidor naquele turbilhão de faces e
olhos. Nada! Inútil! Seus passos ficaram mais largos, a respiração mais ofegante e as
recordações continuavam a brotar em cascata.
Depois da primeira vez em que a viu naquele prostíbulo, retornou em muitas outras noites
para sentir-se próximo a ela. Nunca a tocou, ficava observando seus gestos, tentava ouvir
sua voz em meio ao barulho da música ensurdecedora, torturava-se ao v?la em beijos
promíscuos com outros homens. Ela conhecia o seu segredo, ela o invadira.
Não se lembrava mais do momento em que decidiu fazer o que fez, talvez tenha sido na
terceira visita àquele bordel, quando esbarrou novamente com os olhos de Rose o
analisando, provocando-o a revelar-se. Rose tinha olhar de abutre, penetrava em suas
entranhas e ele passou a sentir uma náusea insuportável, tinha ojeriza ?sua presença,
aversão ?sua existência. Sim! Foi quando identificou aquele olhar de rapina que
decidiu executar sua trama amoral.
Seu coração batia tão forte que podia escut?lo, sua cabeça estalava em pulsações
desordenadas. Por que o estavam seguindo? Como poderiam t?lo encontrado? Ele pensou em
parar e enfrentar quem o seguia, mas apressou o movimento das pernas, correu, queria
escapar...
Antes da execução, dissecou detalhadamente a rotina de Rose, conheceu seu horário de
entrada e saída no bordel do Centro da Cidade. Soube que ela saía sozinha e onde pegava
a condução que a levava de volta para casa. Certo dia, seguiu a van que a transportava e
descobriu que ela morava para os lados da Pavuna.
Agora, ele poderia traçar o roteiro do seu intento.
O fôlego começava a lhe faltar, mas as pernas respondiam numa corrida sem rumo no meio
daquela selva de rostos anônimos, ele sentia a massa humana se contrair num espasmo
voluntário. Queriam esmag?lo. Ele estava acuado. Seu perseguidor não iria desistir.
O plano era simples e a técnica que usaria para eliminar a causadora do seu tormento se
baseava numa leitura que havia feito h?anos, num livro sobre medicina de guerra.
Soldados usavam duas facas para apunhalar o inimigo na altura dos rins, simultaneamente. A
dor era tão lancinante que a vítima não encontrava força para gritar. Seria assim!...
Quando Rose lançou-se pela Rua do Acre deserta e sombria, ele a chamou. Disse que havia
atropelado um cachorro, pediu que ela o ajudasse a acomodar o animal no carro, que ele
iria socorr?lo. Ela se aproximou, curvou-se para tentar enxergar o cão ferido e ele
então fincou, com violência e sincronia, os dois punhais nos rins da mulher.
Não houve grito, mas um grunhido abafado e terrível ascendeu do asfalto, o corpo de Rose
petrificou-se. Ele a lançou no banco de trás da caminhonete e engrenou o carro pelo
percurso que levava at?a Pavuna.
Havia muito sangue, mas ele cobrira os bancos com lençóis e toalhas. No meio do caminho,
numa rua deserta e escura do subúrbio, enrolou o corpo nos panos e o descarregou no
meio-fio. Os olhos de Rose tinham a expressão do vácuo, o abutre estava morto. Ninguém
mais conhecia o seu segredo. Tudo era silêncio...
Suas pernas vacilavam... Desde o dia do assassinato passou a vagar pelo Centro, sabia que
alguém passara a segui-lo. As batidas do seu coração oprimiam seus ouvidos, o cérebro
queria explodir, não conseguia mais correr, alcançara seu limite. A multidão o envolvia
num círculo fechado, seus perseguidores eram muitos, ele ainda tentou um último pique
desesperado, mas tropeçou e se viu arremessado, como num salto, aguardando o impacto
vertiginoso com o chão áspero. Ele se debateu e bradou a sua culpa enquanto despencava.
Acordou!...
Estava amarrado por correias a uma estreita cama de ferro, o ambiente era de penumbra,
cortinas de plástico o contornavam, escutou passos em aproximação. Uma mulher vestida
de branco surgiu diante dele, lia-se um nome bordado no jaleco que trajava: Sanatório
Estadual.
Ela tocou seu rosto e olhou dentro dos seus olhos. Ele estremeceu e chorou, antes de
adormecer novamente ao pico ácido de uma seringa.
Eram os olhos do abutre!...
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