A casa
Anne Luisa Nardi
A casa estava arrumada. Do jeito que ele gostava. Havia passado a tarde dedicando-se a
tirar o pó impregnado dos móveis, limpando os porta-retratos, esfregando o chão de suas
imundícies até sentir que as mãos estavam trêmulas e não obedeciam mais. Tomou
cuidado para que cada canto, cada entrada e cada saída ficasse impecável. A casa não
era grande, mas depois de todo lixo expulso, parecia maior. E agora, quase imaculada não
fosse a presença dela, a casa era só solidão. Porque até a sua presença estava cheia
de solidão. E ela esperava, torcendo as mãos e observando as luzes da rua, a chegada
dele. Sabia que seria intempestiva, por isso arrumava a casa, uma, duas, três vezes, para
que ele pudesse despejar sua bagunça.
Era assim sempre.
A casa pronta, as três batidas, ela saltava do sofá e abria a porta. Tudo se modificava.
A casa branca enchia-se novamente. As cores trazidas por ele riscavam o chão, a mesa, a
janela, o quadro, o teto, a cama, o tapete, os lençóis. Quase cegando-a.
Já na porta, os pedaços de seu desarrumado começavam a ficar pelo chão. Ela apenas
dava passagem para ele pudesse entrar e observava a poeira deitando novamente sobre os
móveis.
Era como um vento.
As folhas de papel cuidadosamente empilhadas na escrivaninha saltavam e eram levadas para
fora da janela. Um a um os porta-retratos estilhaçavam-se no chão. Não era mais só uma
casa, era um emaranhado de palavras, sons, luzes e visões desconexas. E ele agigantava-se
vertiginosamente aos olhos dela.
Ouvia o som dos vidros serem quebrados longinquamente, de lençóis sendo rasgados e
sentia o cheiro da lama misturado ao cheiro das rosas esmigalhadas. Havia uma brusquidão
nos gestos, que a cada movimento acertavam-lhe um soco no estômago, mesmo sem tocá-la.
Ele nunca a tocava.
Ao mesmo tempo, havia certa suavidade na voz, como que parecida com uma carícia sutil.
Seus olhos sugavam-na, chamando a misturar-se a ele, a compartilhar da desordem das
coisas. Aquela desordem que parecia imiscuir-se nele.
Por um segundo, apenas e somente por um segundo, que ficava suspenso no ar, ela deixava-se
mergulhar, e neste segundo podia ver caleidoscópios rodopiando, portas que se abriam
estrondosamente, vozes misturadas, e mãos de mil cores tocando-a.
Então ela se dava conta de que ele era feito disso, ele era isso. A desordem das coisas,
as mil cores, as mil vozes, as mil portas. E o aceitava como quem aceita uma criança em
seu ventre.
Eu te aceito. Te aceito. as únicas palavras no meio daquela noite, ditas
sem deixar escorrer um único som.
Agora ele estava dentro dela, correndo por suas veias, atravessando suas conexões
nervosas e remexendo suas entranhas, pulsante, pulsante.
Ela era a casa. A casa que ele desarrumava. Deixando em cada pedaço de espaço, o pó
viscoso de sua imensidão. E dentro dela ele se arrumava e reconstruía cada parte sua.
Abandonava ali, a lama e a brusquidão, para se tornar suave, quase harmonioso outra vez.
Ela ouvia então um grito quase mudo que se esforçava para sair da garganta de alguma
coisa. E como num parto, ela o expulsava de si, como num parto que faz nascer, brotar,
jorrar.
Ele nascia novamente, limpo, puro de todas as durezas, pecados e da loucura suja
nem toda loucura é suja, assim como nem todo mal é ruim para sair pela porta e
deixá-la novamente sentada no sofá, as mãos se torcendo e os olhos espiando as luzes da
rua.
Ele havia partido, estava sozinha. Ela e casa, que já não era mais ela. As cores
apagadas e o silêncio. A casa que ela tinha que arrumar. Pois sabia que ele viria
novamente no outro dia.
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