Espelho baço
Albano Martins Ribeiro
Estava sentado ao lado do velho, um desconhecido que, de tão visto e
acompanhado, me era quase um velho conhecido. Acabara de acordar no
assento em que tinha passado a noite, vigiando, por assim dizer, o
ser imóvel. Olhava a cama de ferro, alta e branca, coberta por panos
que ontem haviam sido lençóis limpos, o pijama branco envolvendo-o
por debaixo. Éramos três: eu, ele e a vara que sustentava a bolsa de
soro, presença das maiores, de onde lhe pingava uma vazia esperança
de vida. Dentro do pijama, o homem seco e branco era um carregador
de farinha. Lá fora onze horas, sol alto e forte, nascido em manhã
absurdamente azul. O quarto branco na penumbra.
Mal se ouvia o respirar. Por cima dos lençóis, as mãos nodosas,
ossos recobertos por pele cor de cinza, e ainda assim mãos que foram
bonitas. O rosto enrugado, a barba rala e grisalha que brotava por
entre as rugas, fruta passa. A cabeça, do perfil que a via, um
objeto anguloso, pedaço de madeira esculpido a facão, faraó
embalsamado. Quis dizer múmia, achei ofensivo. Mas era assim.
A porta se abre lentamente, como se quem a estivesse abrindo
cometesse estudada mas necessária imprudência. Nada se via além de
finas pontas de dedos finos contornando a lombada da porta larga,
mão de um pardal que se firma num galho. O rosto em seguida, depois
a silhueta esbelta, um vestido que pareceu preto por ser igualmente
silhueta: uma mulher. Trazia alguma coisa abraçada ao peito, à
semelhança de cadernos de uma colegial, e quando os olhos de quem
observava se acostumaram à luz vazada do corredor, vi que há muito
ela não tinha mais idade para isso. Podiam até ser cadernos, mas
estudante ela não era. O vestido era mesmo preto, nada mais havia
sido ilusão provocada pelas luzes sombras.
Deu dois passos e enfrentou a cama. Abraçada às coisas, tesa,
empertigada, uma quase insolência. Sequer olhou para mim, foi como
se eu não existisse, o que era então verdade. A boca contraída
disfarçava a iminência de um chorar, mas seus olhos brilhantes
cantavam um hino de guerra, igualmente apertados. Era bonita ainda.
Tinha sido muito mais, quem a tivesse acompanhado no correr da
estrada não lhe veria a idade, só a beleza por trás do rosto bonito.
O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel, a boca entreaberta,
uma ausência presente, um engano embrulhado em panos quase brancos.
Ela o olhava e se lembrava.
Viu-o de frente, levantado em pé, e se lembrou primeiro do que
pensaram ambos ser o último adeus — como se houvesse últimos
adeuses, como se houvesse adeus sem morte —, adeus de há tempos,
quando as mãos dele não eram cor de cinza. Ela viu novamente as mãos
que nunca havia se esquecido delas, viu-as tamborilar sobre a mesa
ao lado do copo vazio na hora do último adeus, displicência
destoante da tensão triste da hora, lembrou-se da raiva que sentiu,
e sentiu aquela mão direita que depois pousou na sua face esquerda,
o olhar de desculpas sem sentido, lembrou daquelas mãos lhe correndo
pelo corpo, a sensação das unhas lhe descendo pelas costas em queda
livre, o arrepio, a aguardada chegada ao debaixo das suas roupas
mais íntimas, aqueles dedos lhe vasculhando o interior e sentiu
novamente, ali mesmo em frente àquela outra cama, como sempre
sentira, o amolecer dos joelhos, a vontade de se cair de bruços, e
conseguiu vê-lo novamente nu, forte e rosado, arrogante de tão
menino, a expressão de pedra que tinha enquanto a possuía, o quanto
ele detestava essa palavra possuir, o sem sentido da expressão dura
e muda de seu rosto, em oposição aos primeiros murmúrios dela, aos
primeiros gemidos, aos gritos de prazer, e depois os gritos da dor
que vinha do tanto prazer jamais sentido por ela, e o silêncio
suado, o silêncio depois do trovão, silêncio... hora da revisão, de
repassar entorpecida o que lhe tinha acontecido, o que ele tinha
feito, o que ela tinha permitido que lhe fizesse, que sempre
acontecia diferente, hora de enrubescer, de não acreditar no que ele
tinha conseguido que ela fizesse. E enrubescia porque estava certa
de que tinha feito.
O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel. Mas como se sentisse
a presença, abriu os olhos e morreu. Ela o percebeu morto e chorou,
desistindo.
Deixou cair os papéis lentamente, que foram lhe fazendo um último
carinho pelos seios e pelo ventre enquanto desciam em sua queda
livre, sem lhe vasculhar a carne pela última vez, simplesmente
despencaram em direção ao chão e se espalharam, folhas caindo da
árvore morta, seu ser vivo.
Não havia mais quem lesse o que estava escrito. Acabara, finalmente.
Abaixou a cabeça, não a olhar papéis, apenas livrando-se da ensaiada
insolência da chegada, virou-se e saiu lentamente, deixando-me
sozinho no quarto. O velho sou eu.
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