Como abandonado
Cesar Antonio Franchin
Há mais de vinte anos, estive junto da velha. Há mais de vinte anos, dividi o mesmo teto
com a velha. Mas, eis que de repente, me vi só no mundo como um cão sem dono.
Nossa casa ficava em bairro classe A, tranqüilo, mas nunca a vi tão
movimentada como naquele dia. Nem nos natais, nem nas viradas de ano, nem nas festas da
Páscoa, nem nos aniversários éramos visitados daquela forma.
Eram pessoas passando de um cômodo a outro com uma velocidade inexplicável como
aproveitando a ausência da dona. Algumas até me faziam lembrar da velha, mas não pelo
modo de se portarem, pelo cheiro, mas pelos traços que entregavam certas semelhanças.
Da soleira da porta em que permaneci, consegui acompanhar cada ação daquele povo todo
estrangeiro dali.
Aos poucos, a cadeira de balanço era levada para um caminhão que esperava lá fora. Os
vasos da sala de estar eram embrulhados em folhas de jornal como para viagem. A cama, o
armário, a sapateira eram levados por outros estranhos, agora para uma Kombi que invadira
a garagem. Dentre as pessoas, ouvi algumas palavras de lamentações: ... tão
jovem, coitada,... Gostei desta fruteira!... É, realmente, uma pena... Olhe
que quadro mais encantador!. Das pessoas ouvi também reclamações quanto a minha
presença ali: ... sai logo daqui antes que eu..., e permanecia quase imóvel
na soleira da porta como espectador. Seria isso, então, o que a velha costumava chamar de
assalto? Seria a isso, então, que eu deveria prestar atenção? Seria isso, então, que
eu deveria evitar? Revoltado com minha instantânea ignorância, passei a reclamar com
agudos de tenores, o que resultou somente em mais reclamações quanto a minha presença
ali.
Acalmei os ânimos, mas ferviam outros dentro do quarto da velha. Os trilhos da cortina
eram disputados com argumentos fortíssimos tanto de um lado quanto de outro. Reclamavam o
direito ao prêmio uma por ser a mais nova, outro por ser o mais velho, outro por ser o
marido da mais nova, outra por ser a esposa do mais velho. Enquanto isso, mais um copo era
cuidadosamente quebrado ao ser retirado da cristaleira. Não sei se esse acidente foi
verdadeiro, ou foi intencionalmente maquinado como o anterior para não
satisfazer um desejo alheio de posse.
Senti falta da velha. Não queria acreditar, mas ela não voltaria mais. Eu não sentiria
mais aquele perfume enjoativo de lavanda que chegava a me sufocar e a me fazer tossir como
cão velho. Eu não comeria mais aquelas migalhas do pão caseiro que ela costumava fazer
para comer com geléia de amora a mesma que o médico a proibira e que ela sempre
me lembrava cochichando baixinho.
A casa passou a ficar vazia, desolada, abandonada. Os estranhos que invadiram-na levaram
até mesmo os retratos. Não deixaram nada.
Apenas eu...
Se pelo menos tivessem levado crianças para eu divertir, conquistar novos donos, novo
lar...
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