Célia é um mamífero
Clotilde Zingali
Célia, funcionária de uma empresa de telefonia móvel, olhando-se no
espelho, admite que é um mamífero. Afinal, tem
sangue quente e
respira pelos pulmões. Quando está na água e usa o snorkel, sente-se
inadvertidamente adaptada e em comunhão com as espécies todas que
ela descortina. É sociável dentro e fora da água. Olhando a coisa
desse modo, pensa que o que de fato lhe falta são nadadeiras. Olha
seu corpo com cuidado, os braços e pernas que podem movê-la. As
narinas para respirar. Tudo a contento. O que lhe falta mesmo é uma
grande cauda, como as baleias. Algo que dê propulsão ao seu desejo
de deslocamento. E mais uma grande camada de gordura para ajudar na
flutuação e manter o calor. De posse desses itens, não tem dúvida de
que atravessaria o Atlântico e todos os mares. Faria grandes
travessias e de quando em quando iria emergir e expelir o ar quente
e úmido dos pulmões. Daria um show formando colunas de água cada vez
mais altas. Sabe que é bom poder habitar e desabitar as profundezas.
No caso da baleia, bom e uma questão de sobrevivência quando rondada
por caçadores. De qualquer modo, é claro que com essas propriedades,
não lhe faltaria o canto e nem sublime audição para se localizar na
imensidão dos mares e fazer contato com os seus. Pensa que deve ser
por isso que quando canta sente-se absolutamente em comunhão. Lembra
de ter lido que as baleias, quando se comunicam em distâncias
superiores a que 24 km, fazem essa troca através de uma mesma janela
de freqüência. Em função de seu trabalho, faz logo analogia ao
verificar que usuários de telefone celular também se sintonizam nas
áreas mais silenciosas do espectro sonoro. Atenta para a obviedade
do fato de que a comunicação entre as baleias seja feita através de
uma mesma janela de freqüência. Sorri. Não pode mesmo haver contato
em freqüências desconexas. Há que, minimamente, se o usar o mesmo
canal. E nem assim há garantias de comunicação. Frases e palavras
podem se perder no canal, irremediavelmente. Pensa que deve ser por
isso que as baleias cantam. Porque cantar coloca o eu e o tu na
mesma faixa. Deve ser nesses momentos de conexão que a baleia sofre
uma alegria insana e salta rompendo a água com seu corpo de algumas
toneladas. Quantos segundos ela poderia ficar suspensa nesse desejo,
vencendo a gravidade da água? Dizem que nessas ocasiões as
nadadeiras, normalmente atrofiadas, chegam a medir até 1/3 de seu
comprimento. Elas quase pássaros em uma metamorfose movida pela
alegria do contato. Um vôo de puro desejo. Sustentado por esse
desejo. Célia está certa que quer comunicar e não tem medo de
distâncias. A água tem propriedades acústicas onde o som se propaga
mais rápido que no ar, e ela sabe fazer seu espadanar chegar onde
quer. Sabe, a despeito do tom quase puro e de baixíssima freqüência
com que se comunica, que sua combinação de estalidos é uma espécie
de assinatura sonora que a identifica e chega ao seu interlocutor em
sequências de pulsos e intervalos. De que modo ela poderia desejar
mais?
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