O escalador de nuvens
Carlos Vageler
Pedro não se conformava com a vida que estava levando. Preso a uma cadeira de rodas, sua
mente sempre estava repleta de lembranças dos momentos que antecederam o fatídico
acidente de carro que lhe tirou os movimentos das pernas.
A festa, os amigos, as gargalhadas e os mais ínfimos detalhes. O número de passos até
sentar-se atrás do volante, os minutos, o que falara e os outros também. Procurava
incansavelmente algum detalhe no passado que pudesse ter-lhe salvo daquele destino.
Conseguia apenas com isso se desencantar, entristecer-se. Mas a todo o momento procurava
uma saída naquilo que não tinha mais volta. Se não tivesse com tanta pressa de sair da
festa? Se não tivesse parado para conversar com aquela pessoa? Se o carro tivesse falhado
ao sair...
A vida de Pedro de resumira a pensar no "Se" houvesse acontecido algo que
pudesse ter evitado o acidente. O tempo passava e tudo o angustiava. Parou de estudar,
perdera o estágio que fazia e os "amigos" dificilmente o procuravam para uma
conversa que fosse, pois Pedro se tornara uma pessoa extremamente "amarga".
Havia desistido de praticamente tudo.
Uma certa noite Pedro, na varanda do apartamento que dividia com sua mãe viúva, olhava o
movimento da rua e começou a prestar mais atenção aos detalhes de tudo que ocorria ali
a sua volta. O prédio que estava ficava numa esquina de uma rua movimentada com outra
transformada em um calçadão, na qual se projetava a sua varanda. Isso lhe dava uma
visão estratégica de uma ponta a outra do mesmo.
A princípio apenas como algo para passar mais rápido o tempo, que dizia ser seu maior
suplício, ficava a olhar as pessoas que vinham e iam apressadamente e outras tantas de
maneira despreocupada. Ao reparar numa especificamente, Pedro a seguia com os olhos desde
o início da rua. Reparava em seus passos, se eram lentos ou não, sua cadência e até a
velocidade entre um ponto e outro que passava, de uma árvore até a lixeira laranja, de
um desenho a outro do mosaico que decorava o passeio. Isso tudo, de certa forma, amenizava
aquela que já era sua mania de pensar no que poderia ou não ter acontecido no passado.
Uma certa hora apontou na esquina e virou para sua rua uma mulher de vestido azul, negros
cabelos compridos ao vento, batom vermelho percebidos ao longe, sapatos pretos e
brilhantes, barulhentos ao tocar no chão; toc toc, toc toc, que Pedro escutou logo que
ela deu o primeiro passo após a esquina que conseguia avistar.
Aquela mulher por algum motivo lhe chamara muito a atenção, não somente pela beleza,
pois já havia visto muitas outras beldades, mas o conjunto de detalhes, a forma de andar,
de movimentar os braços, a cintura. Aquela criatura conseguiu fazer com que o tempo
fluísse de uma maneira singular, própria de momentos de um filme onde um instante demora
a acontecer. Os intervalos entre os passos e o que ocorria neste ínterim invadiam seu
pensamento. De onde era? por que estava ali? Onde havia de ir?
Após percorrer toda rua a mulher postou-se diante o meio fio da calçada, bem abaixo de
onde estava, para atravessar a rua. Parada, olhou para o lado do fluxo da via, esperou
dois carros e uma moto passar. Com ar despreocupado e mente totalmente levada por algum
pensamento, coloca seu pé direito na rua.
Pedro, como estava fazendo pelos longos últimos 100 metros percorridos pela morena,
observava a cena, quando percebeu um carro saindo apressadamente de uma garagem, que de
forma totalmente inconseqüente dá sinal de que vai entrar na rua pela contramão a
poucos metros da mulher que, atentando aos veículos que acabavam de passar a sua frente
pelo sentido correto, coloca o segundo pé na rua para começar a atravessar. Velozmente o
carro recém saído da calçada por detrás de uma banca de jornal, avançou para cima da
mulher que não percebia o perigo.
Desesperado e num impulso sem consciência, Pedro, com suas mãos não muito fortes,
coloca seu corpo para frente e para cima apoiando nos braços da cadeira de rodas e se
põe em pé. Por um pequeno instante parece flutuar. No momento seguinte, com a força do
impulso bate o peito na grade da varanda e fica com a metade do corpo para fora,
praticamente dependurado no segundo andar do prédio. Com a pancada na barriga e o susto
de seu próprio ímpeto, apenas conseguiu soltar de dentro de suas entranhas um vigoroso e
rouco som:
Eiiiiiiiiiiiiii
A mulher, não sabendo de onde vinha o grito, desviou o olhar da linha que pretendia
seguir até o outro lado da rua e voltou-se para seu lado esquerdo, de onde vinha o carro
pronto para acertá-la. Deu um passo para trás, o carro freou, mas a pegou de raspão, o
que a fez cair de costas e bater a cabeça no chão. A linda morena, com os cabelos agora
sobre sua face está caída e fica desmaiada por alguns segundos. Recobrando a
consciência, abre os olhos e com as imagens em sua retina ainda turvas, olha para cima,
no que vê um homem bem no alto, como que a aparecer no meio das nuvens, com um grande
sorriso de alegria e conforto ao perceber que estava bem. Parecia um anjo, outrora muito
triste que havia realizado um sonho.
Pedro, ainda equilibrando-se com a metade do corpo para fora da varanda, permanece ali
até a linda mulher de azul levantar-se amparada pelos que ali passavam. Tudo havia
ocorrido em menos de um minuto. Ainda com a força dos braços conseguiu pendular-se para
dentro da varanda.
No momento que percebeu estar em segurança, em pé, apoiando-se somente com uma das
mãos, teve um turbilhão de pensamentos e questões começaram a lhe brotar:
E se ele não tivesse gritado para a mulher? E se ele não tivesse perdido tanto tempo
pensando no passado? e se começar a tentar a andar novamente? e se começar uma nova
vida? E, se ele quiser, poderia até escalar as nuvens.
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