Traga
Fernando Belo
Trocou as unhas pelo cigarro do marido. Tanto roia as unhas Dona Judith que chegava o
sabão a doer na hora do banho. Não bastasse o dedo doído por si só, a cabeça também
começou a coçar por falta de uma lavagem eficiente. Somados os reveses, achou por bem
trocar de vício.
Tem pavor do cheiro de cigarro a Dona Judith. Do cheiro, mas não do gosto. Descobriu que
chupando o cigarro apagado, vinha o gostinho queimado do beijo do marido Seu José. Era
como voltar à mocidade macia de outros tempos, em que o difícil era conter o beijo
inquieto de Seu José, jovem ainda e sem a alcunha de Seu. Agora, Dona Judith cultiva uma
língua solitária, fadada ao consolo de um gostinho.
Mesmo avançado na idade, o marido de Dona Judith dava suas caminhadas noturnas. Saía
perfumado, com o cabelo e o colarinho igualmente engomados e um cravo estrelado no peito.
As horas passavam e Seu José voltava ao lar pouco antes do Sol revelador nascer. Entrava
pé enrugado ante pé enrugado, pensando-se oculto no escuro da sala. Mas Dona Judith,
sentada no sofá, chupando seu cigarrinho, reconhecia o marido. Mesmo com os cabelos
desgrenhados, o colarinho sujo de batom e o perfume misturado, Dona Judith reconhecia o
marido e pensava em que canto desse mundo deveria ter ficado o cravo do peito marital
dessa vez.
De que adianta tanta goma no cabelo? e Dona Judith suspirava o seu
cigarrinho, soltando uma baforada muda de fadiga.
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