No banco dos réus
Federico Ferino
A estátua de Carlos Drummond de Andrade no calçadão de Copacabana é um pequeno ato de
justiça poética. Lá está ele, sentado num banco como um transeunte qualquer que
saísse à tarde para dar um passeio no calçadão e sentisse doer-lhe os dedos dos pés.
Classicamente sedentário. É verdade que nunca foi andarilho, como Gonçalves Dias, homem
de sensibilidade oceânica e grandes espaços abertos. Mas também sabia que nosso céu
tem mais estrelas, e nossa vida mais amores.
Sou do tempo do Brasil literário de Drummond. Naquela época, ainda havia poetas. Ele
não era o único, é claro. Tinha a Cecília Meirelles. Tinha o Vinícius. Tinha o Manuel
Bandeira. Tinha o Jorge de Lima, o Murillo Mendes. E a gente abria a revista e lá estava
a crônica canora do Rubem Braga. Ou o texto culto e matizado do Paulo Mendes Campos. A
leveza direta do Fernando Sabino e a leveza enviesada da Clarice Lispector. Mas nenhum
brilhante faiscava como a poesia de Drummond. Bandeira e Vinícius que me perdoem, mas
aquilo era novidade absoluta no português brasileiro. Um crítico literário iniciante,
um estagiário de jornal podiam destemidamente compará-lo a Dante ou a Shakespeare. Não
havia perigo de errar, ou cair no ridículo. Ninguém acharia absurdo. Hoje, não. Hoje
qualquer um põe em dúvida o seu legado literário, o seu lugar na hierarquia das nossas
musas. Impunemente: ninguém reclama.
Por que em Copacabana? Drummond, rigorosamente mineiro, era também carioca de Copacabana.
Ali viveu os últimos anos, os anos de medalhão ou, como ele próprio diria, os
anos de incerta medalha. Ali morreu, de infarto fulminante e de irremissível desolação.
Pouco antes perdera a filha única, Maria Julieta. Morreu inconformado com as perdas,
porque os ombros não suportam as dores do mundo.
O Drummond perpetuado em bronze nada tem de marinheiro ou de náufrago. Vivia à
beira-mar, como o próprio Rio, mas também como o Rio não era marítimo. Era serrano. O
poeta está de óculos e relógio de pulso. Não sei se em vida usou relógio. Talvez sim.
Não nos esqueçamos de que era funcionário público exemplar. Lá estão a testa alta,
de intelectual de caricatura, e os óculos de míope, atributos de sua persona
pública, como a timidez e a pedra no caminho. E o relógio; vá lá, o relógio de pulso.
Em todo caso, já não precisa ver as horas: virou eterno. E o tempo já não lhe soma, o
tempo já não lhe subtrai.
Há quem reclame da sua posição de costas para o mar, como se ignorasse a formidável
presença do Atlântico o oceano terrível, o mar imenso com suas vagas mordendo a
fulva areia. Pode um poeta de alto coturno, um poeta de homérica altitude, dar as costas
acintosamente para o mar oceano? Lembremo-nos de que ele vinha de Itabira. E, se não era
um Goethe roseano era, certamente, o mais machadiano dos sertanejos.
Carlos Heitor Cony é categórico: Drummond jamais ficaria de costas para o mar. Nem mesmo
para a areia; quanto mais não fosse, pela nudez feminina das praias cariocas. Disse Cony
numa crônica que Drummond, quando desiludido com os semelhantes, sentava-se num
banquinho. De frente para o Atlântico, à procura de um ponto de fuga, de um horizonte de
conciliação. Nessas ocasiões talvez abafasse um soluço, talvez lhe escorresse uma
lágrima silenciosa. Esta é a diferença: estátuas não choram.
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