O último humanista
Fernando da Mota
Lima
Fui mordido por um cachorro quando tinha
três anos de idade. É uma das mais remotas e traumáticas memórias de
minha vida. Talvez por isso costume lembrar com prazer a definição
do uísque proposta por Vinícius de Moraes, uma das maiores
autoridades no assunto: o uísque é o cachorro engarrafado.
Traduzindo-a a meu modo, não gosto de cachorro, não confio em
cachorro. O único cachorro que tenho como amigo é o uísque. Indo
adiante, sou um humanista impenitente. Olhando à minha volta, todos
os dias, começo a desconfiar de que sou o último. Meus semelhantes,
decerto desiludidos do convívio humano, preferem cada vez mais a
companhia dos cachorros.
Quem lembra ainda uma canção de Waldick Soriano, o rei do brega, num
tempo em que a classe média letrada tinha o pudor de ser confundida
com esse tipo de música, e antes de tudo padrão de comportamento, na
qual ele orgulhosamente se distinguia do cachorro? “Eu não sou
cachorro não”, gemia o cantor magoado com o sofrimento que a amada
cruel lhe impunha. Hoje uma canção dessas seria inconcebível. Não
por ser brega. Bem pelo contrário, a julgar pela qualidade corrente
do que se ouve, a canção de Waldick seria hoje louvada como um
clássico da canção popular. A canção seria inconcebível porque o
cachorro foi elevado a uma condição de privilégio amoroso invejável.
Falando por mim (por quem mais poderia falar?) passei a invejar
caninamente os cachorros. Todas as tardes saio para caminhar no
calçadão da praia e assisto sempre, de coração cortado, a esse
espetáculo invariável: meus semelhantes, sobretudo mulheres,
passeiam exibindo orgulhosamente seus cachorros. Muitos saem
enfeitados com coleiras coloridas, penteados caprichosos, todos
talvez zombando da indiferença com que nós humanos nos tratamos.
Outro dia fui visitar um amigo internado na UTI (U Teu Inferno,
segundo minha tradução). Diluído num círculo de parentes e amigos do
enfermo, fiquei sem assunto durante mais de uma hora. Afinal, fui
sem cachorro na coleira, sem cachorro no coração, sem misantropia na
ponta da língua. Todos os presentes falavam amorosamente dos seus
cachorros: de salão de beleza para cachorro, comida para cachorro,
clínica idem, toda uma rede de serviços para cachorro. Ninguém
mencionou sequer (juro!) o nome do meu amigo enfermo, que aliás
morreu poucos dias mais tarde.
Mudo de cenário. O condomínio onde moro. Quase ninguém se
cumprimenta, quase ninguém se conhece ou manifesta interesse em
conhecer o vizinho, literalmente o próximo. Descobri, no entanto, um
meio infalível de me darem atenção. Entro no elevador e esbarro na
vizinha atada à coleira do seu cão. Observo casualmente: como é
lindo o seu cão... Ela muda automaticamente. Graças ao cão amado
(por ela, claro) recolho dois grãos de atenção ou dois dedos de
conversa de alguém que me ignorava e continuaria a fazê-lo, não
fosse a dissimulada atenção que concedi a seu objeto de amor.
Não há dúvida de que está em processo uma experiência de
deslocamento afetivo na cultura hiperindividualista em que vivemos.
A isso se soma uma noção generalizada de hedonismo que agrava ainda
mais relações humanas já por si difíceis. Embora não duvide do amor
que meus semelhantes devotam a seus cães, acredito antes de tudo que
a devoção é sintoma de indiferença pelo próximo, sintoma de uma
crescente dificuldade de convívio com o outro humano. Longe de mim
idealizar esse outro humano no qual me reconheço. Sei dos horrores
de que somos capazes. Mas sei também da grandeza, de uma gama de
expressões humanas que nos salvam ou atenuam o avesso cruel da nossa
condição. Bem ou mal, é com meu semelhante que me entendo e
desentendo, já que compartilhamos uma língua comum, um código de
sentido opaco e instável, mas sempre reconhecível. Além disso, já
não tenho idade para aprender a latir e sujar de cocô as calçadas da
cidade. Não bastasse tanto, sinto ainda na orelha os dentes do cão
que me mordeu quando eu não passava de uma inofensiva criança de
três anos. Em suma, fico com o cão engarrafado de Vinícius de
Moraes.
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