Os demônios de Dona Otilia
Glauber da Rocha
Todos os dias, assim que a dona Otília chegava em casa, às sete horas da noite, a sua
vizinha começava a oração de exorcismo. Otília ficava ouvindo, achando graça nas
palavras da evangélica: ó, Senhor, o demônio chegou, o demônio e a sua legião de
capetas chegaram, queima eles, Jesus, expulsa! Era engraçado, e Otília divertia-se
muito, enquanto colocava lenha no fogão para fazer o jantar.
A casa da dona Otília era a única de madeira naquela rua, tinha pouca iluminação, e o
chão era de barro. Ainda não havia asfalto nessa rua, mas a maioria das casas era boa.
Na verdade, ninguém conseguia entender o porquê que a prefeitura não asfaltava logo
aquela rua, já que ficava num bairro próximo do centro da cidade e bairros mais
distantes e mais pobres já eram asfaltados.
Hoje, o asfalto já chegou, e o bairro teve o seu valor reconhecido, e até a casa da dona
Otília, que era um casebre feio de madeira, agora se encontra feita de material, tal como
as outras, ainda que não tão grandes nem tão belas. Mas o fato é que naquela época a
casa da dona Otília era feiíssima, e ela, por ser boliviana, trazendo na face o aspecto
indígena, era discriminada por algumas vizinhas poucas aliás, talvez duas ou
três, pois o resto a viam com bons olhos: nem todo mundo tem pré-conceito e ódio dos
pobres.
Nem mesmo a sua vizinha crente tinha, antes de converter-se. No entanto, assim que o
pastor começou a colocar na cabeça dela toda uma demoniologia, explicando à partir daí
a origem e a razão da miséria, ela passou a ter ódio dos pobres. Ou medo, não sei. O
que sei é que para essa crente vale lembrar que nem todos os crentes são assim, e
a minha intenção não é ofender religião alguma, nem ninguém a dona Otília,
sua vizinha, era a representação mais cabal do deus da miséria. Otília e Satanás eram
pai e filha.
Mas Satanás tem muitos filhos, e Otília tinha portanto muitos irmãos: o seu Tranca-Rua,
demônio da morte e da miséria, que impedia o progresso da dona Otília; o seu
Zé-Pilintra, demônio da bebida que pegava o marido da dona Otília e fazia dele um
bêbado; a Pomba-Gira, demônio da sexualidade que botava desejos insaciáveis em sua
filha biscate; e assim por diante, uma legião que acompanhava a dona Otília, segundo a
sua vizinha crente.
E não só isso: dona Otília era macumbeira e fazia feitiços todos os dias, era o que
ela acreditava se ela fosse uma dessas vizinhas que ganham coragem para espiar em
cima do muro, iria ver que o único feitiço que a dona Otília fazia era o jantar para a
sua casa, nada além disso. Portanto, ela não acendia incensos para os Orixás, ela
acendia a lenha para o seu fogão, oras bolas. E enquanto cozinhava, divertia-se com os
gritos da vizinha crente, sem saber, na sua grande inocência, que tais gritos eram
dirigidos para ela e a sua legião de encostos.
Mas um dia, graças a Deus, uma outra vizinha veio falar com ela, dizendo que o que a
vizinha crente fazia era algo abominável, que coisas deste tipo não se faz com ninguém,
nem mesmo com as piores pessoas do mundo, que é chamar a pessoa de Satanás, de demônio.
Como é que é?!, disse a dona Otília. Isso mesmo que a senhora ouviu. Quando ela diz ó
Jesus, o demônio chegou, é a você que ela se refere.
Dona Otília ficou triste com isso. Pensou em guardar para si. Mas, sem querer, acabou
contando para o marido, na hora em que estavam jantando, na frente da televisão. O marido
dela, ouvindo esta ofensa, disse deixa ela comigo, Otília, vou mostrar para ela quem é o
demônio aqui. Dito e feito. No outro dia, quando a vizinha crente estava saindo de casa
para ir à igreja com uma outra irmã, ele sacou o revólver e mandou bala para o ar, só
para assustá-las. Saíram correndo, as duas, e ele, ali mesmo, gritou: isso é para você
nunca mais chamar a minha esposa de demônio, sua crente filha da...
Apavoradas, conseguiram chegar à igreja. Falaram com o pastor: é pastor, o demônio
quase matou nós duas hoje. O pastor perguntou como. Elas relataram o caso. O pastor
diagnosticou: livramento. E rendeu glórias, porque no fim Jesus venceu. Na hora dos
testemunhos, lhe chamou para o altar. E lá ela falou que há tempos vem lutando contra o
demônio, que o encardido, de tão furioso, quase matou ela e sua amiga e irmã em Cristo
nesta noite, mas que para a honra e a glória de Jesus, elas não morreram, e sim foram
livres de todo mal.
Aleluia!, gritou um.
Glória a Deus , gritou o outro.
O certo é que lá na igreja delas Jesus venceu, mas, depois deste dia, ela nunca mais
ousou fazer uma oração de exorcismo dentro de casa...
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