Gabriela
Heringer
Gabriela, desça daí; você vai se machucar!
Era inútil! Garota espevitada, ela nunca dava ouvidos a quem quer que fosse; fazia tudo o
que desejava. Eu implorava que descesse, mas confesso que me era agradável vê-la ali,
agarrando-se às telhas e se contorcendo sobre elas feito um calango fornido e apetitoso.
Esta imagem trouxe-me água à boca ressequida que estava aberta de espanto, sob o sol
causticante do agreste paraibano. Gabriela subira ao telhado para tirar de lá a pipa do
menino, que se enroscara no galho. Pipa bonita e muito colorida! Eu mesmo queria ter
pegado pra mim, não fosse o medo de cair. Eu vivia caindo das árvores, dos telhados e
barrancos; e sempre quebrava alguma coisa.
Meu pai dizia que eu tinha os ossos fracos, e por isso me machucava com tanta facilidade.
Mas Gabriela não: era forte, carnuda, desconhecia o medo êta, cabritinha
arretada! Coxas grossas, que só ela. Só de pensar já me davam arrepios bestas.
Agora cá de baixo, eu a observava: a pele morena da diabinha dos olhinhos verdes e longos
cabelos negros, me deixava tonto. Vinha todos os dias me chamar pra brincar, e não admira
que eu estivesse tão apaixonado por ela. Quando faltava, por algum motivo, eu virava
outro, e me sentia confuso e triste. Quase sempre subia num barranco e de lá vigiava o
caminho de sempre, na esperança de descobri-la vindo, alegre e faceira; e só desistia,
quando a escuridão era tal, que me impedia ver o que fosse; aí, eu voltava pra
casa e dormia pensando nela.
Eu tinha treze anos então, e não entendia as intensas emoções que esta menina
provocava em mim, mas confesso que sofri demais. E até mesmo adoeci depois, quando numa
tarde, sentada do meu lado, sob um juazeiro frondoso, que ficava não muito longe da casa,
e em cuja sombra nós dois, juntinhos, apreciávamos as longas e modorrentas tardes do
sertão, ela contou que iria embora. Embora? como ir embora...! falei sem entender
direito porque ela dizia aquelas coisas. E falou que a família iria pro sul, pra São
Paulo, onde já os esperava um tio, que ia ajudar seu pai arrumar trabalho. Senti umas
coisas esquisitas ouvindo-a; mas, só mais tarde, quando partiu, de fato, é que percebi o
quanto significava pra mim.
Passaram-se muitos anos, e hoje, debaixo desse mesmo pé de juá, eu me recordo daquela
tarde que, por certo, nunca mais vou esquecer. Também eu, tempos depois, deixei a
Paraíba, e fui pro Rio, onde ainda moro, e esta, é a primeira vez que volto.
Casei-me, tenho agora duas filhas lindas, e, se alguém me perguntar se sou feliz, eu
direi que sim: acho que sou! Mas, olhando esta árvore fica impossível evitar as
recordações. Já sondei os vizinhos e ninguém pode me dar informações da Gabriela.
Dizem que a família nunca voltou e jamais algum deles enviou qualquer notícia.
Minha filhinha, muito curiosa, vê um passarinho na beira do telhado da casa velha, que
agora é só escombros. Trata-se de um frágil filhote de arribação, que, por esta
época, chegam aqui aos bandos, milhares mesmo, para nidificarem. Corajosa e destemida,
ela insiste em lá subir, pois quer alcançar e cuidar da ave, que pia desconsolada,
talvez desgarrada dos pais.
Procuro usar de tato pra demovê-la da idéia, já que desconhece certos perigos e nem
sabe da fragilidade destas telhas velhas, e seus caibros carcomidos por brocas e cupins.
Mas, logo me distraio com as muitas recordações do lugar, tão impregnado de saudades; e
lá está ela, a minha menininha, sobre o telhado, destemida, tendo já à mão, presa, a
avezinha aflita que se debate, em vão, tentando escapar.
Meu Deus! O coração me salta no peito, descontrolado, e as emoções conduzem-me às
lagrimas; e só estão, com muitas dificuldades, consigo balbuciar:
Gabriela, minha filha, desça daí. Você vai se machucar!
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