Penhascos
Isabel Fontoura
Sou um ancião e sempre vivi na Chapada Diamantina, alojado entre grutas milenares que
tremeram com a passagem da Coluna Prestes e com os tiros de Lampião. Sei das riquezas que
estas cavernas escondem e das lendas que criam vida no ouvido das crianças.
Garimpeiro de muitas lavras, sonhava encontrar diamantes e uma gema tão sólida que
eternizasse a minha história. Lendas de um homem que encontrou a prisão e a alforria
junto às pedras preciosas.
Trabalhava dia após dia no garimpo para um coronel da região. Era parte do ofício
envenenar os rios e matar os peixes em uma guerra de peneiras e dragas no ventre da terra,
contudo, entre mercúrio, marte e a morte encontrava apenas cascalhos. O patrão ficava
furioso e me castigava por achar que estava sendo roubado, não queria acreditar que
naquela fazenda nada havia de valioso.
Uma noite, enquanto dormia, a Santa veio me visitar, desde que me tornei órfão, ainda
pequeno, escolhi Nossa Senhora como minha madrinha, e ela me mostrava uma gruta iluminada
à beira de um precipício, uma trajetória para os diamantes.
Lavrei com vigor, o sonho não me deixava, larguei minha peneira e subi córrego acima,
andei umas duas léguas beirando o rio, nenhum capataz reparou e deparei-me com um
penhasco, desci escorregando entre pedras e lamas até chegar ao começo da lapa. A
entrada era sombria, o cheiro entorpecia-me, um bando de aves das cavernas esvoaçou sem
me tocar, o medo assolou-me, nunca ouvira falar naquela gruta, todavia eu precisava
desvendar aquele recanto de sombra e rochedo.
Um veio de água corria pelo lajedo; e, em meio à frieza do córrego, insetos cegos,
embranquecidos pela noite incessante da caverna, fugiam dos meus passos. Nas paredes,
desenhos de homens que viveram sob o manto de pedra e deixaram o registro no seio da
gruta. A passagem era muito estreita, o ar parecia escapulir do meu corpo, apertava as
mãos, os dentes travavam de frio, enquanto minhas pernas cambaleantes alcançaram uma
senda que cintilava no subsolo, e; em meio à escuridão, uma claridade nunca vista
ardeu-me os olhos.
O sonho materializou-se, havia opalas, águas-marinhas, ametistas. Muitas pepitas de ouro.
Apanhei o máximo que pude e, ao sair, ouvi tiros: Cães, cavalos e capangas do coronel
estavam a minha caça. Voltei à gruta e permaneci lá por muitas luas, alimentando-me de
traíra crua e preás, devorei uma serpente que guizou em meus pés. Bebi água do rio que
envenenara e sonhei com muitas lapas iguais a esta. Não queria mais sair: recluso no meu
castelo de pedras, marajá com temor dos homens e das suas armas, cercado dos tesouros da
mina de Nossa Senhora. Só e sozinho no calabouço, estava feliz.
A lapa, no entanto, enojou-se de mim, e a terra tremeu, fugi tropeçando nas estalagmites
milenares construídas no gota a gota do suor do tempo. A gruta ficava cada vez mais
escura e as pedras desabavam nas minhas costas, devo ter corrido muito, era zanga de Nossa
Senhora, decepcionada com seu afilhado, e receio muito a fúria das mulheres. Na fuga,
perdi as pedras que abraçava ao peito e, por mais medo da pobreza que da morte, engoli os
diamantes que tinha no bolso. Avistei uma luz intensa ao final de um túnel comprido. Era
a luminosidade do dia, o sol, a saída da cratera.
Embrutecido pelas pedras, desvalido pelo homem. Despertei no corredor de um hospital:
tísico, demitido, homem sem saúde não serve para lida. Disseram que eu estava ali há
alguns dias, falando frases soltas delirando de febre e clamando por Maria.
Convalescente, lavrei entre meus dejetos pedras brilhosas: eram diamantes, que se
dissiparam aos ventos de aguardentes e bordéis, consegui apenas após duas décadas
arrematar a fazenda do coronel, terras estas onde conheci a escassez e a fartura, o retiro
e o encantamento. Subterrâneos. Alqueires onde selei minha sina de garimpeiro de lavras
do desconhecido.
Hoje solto ecos nos penhascos, procuro a gruta de tesouro e de água envenenada que entre
a rocha, a escuridão e a vida conduzirá meu caminho por trilhas sinuosas para escavar,
naquela mina, um diamante de muitos quilates, lapidado pela engenhosidade do tempo. Pedra
cintilante que contará a história de um velho garimpeiro, cego e sedento pelo brilho dos
minerais, então descansarei naquele jazigo de jazidas, refúgio final de um peregrino.
E-mail: anaisabelo@ig.com.br
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