Perdão
Izabel Santa
Cruz Fontes
Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente,
desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu
desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer
dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O
café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos,
então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso
metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.
Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos
pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar
pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio.
Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia
tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um
tratado político no Sul da África... você fala, fala, fala. Fala
coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede
desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler,
termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo.
Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se
limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora,
permitindo-se um resto de orgulho.
Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura
implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito
de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso
largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos,
você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou
sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o
corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem
motivo.
Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente,
paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de
quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e,
calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos
perdoamos.
E-mail:
beu.o@hotmail.com
|