Julieta pós-moderna
Luciana Mello
Ela acorda apressada, afinal, j?passa das sete. Arma-se: pega o celular, o laptop,
confere a agenda do dia em seu palm. Depois de beber um gole rápido de caf? d?
as coordenadas para a empregada, que ficar?no comando do QG doméstico durante o dia e
sai, marcando passos decididos do alto de seu salto sete. Sabe-se l?a que horas voltar?
para casa hoje...
Terceirização dos afazeres domésticos: este maravilhoso fenômeno da contemporaneidade
feminina possibilitou que nós, mulheres, descobríssemos que h?vida fora de casa.
Mergulhamos de cabeça no mundo, mas, hoje, percebemos que não levamos bote salva-vidas!
Levantamos nossos sutiãs em praça pública, hasteando a bandeira simbólica da luta
contra as amarras da sociedade capitalista, contra os preconceitos pequeno-burgueses
machistas, contra qualquer lei que impusesse limites ?liberdade de nossos seios.
Achávamos que éramos libertárias, outsiders. Mas, literalmente, no bojo
pr?moldado desta revolução, não conseguimos vencer a Lei da Gravidade e, como
conseqüência, vivemos hoje a ditadura dos seios fartos, simulacros de silicone e andamos
presas, em armaduras-suti?com aros, espumas, enchimentos a óleo e água...Tudo, para
reforçar a imagem do air-bag duplo.
Ah!, a imagem...Contra os milhares de radicais livres que andam soltos por a? vestimos
nossas poderosas máscaras cosméticas e tentamos dizimar com golpes cientificamente
calculados, utilizando poderosos ácidos, toda e qualquer ruga que ouse surgir em nossa
pele. ?o arsenal bélico da guerra química da mulher pós-moderna, que se torna cada
dia mais sofisticado em vão pois nós, guerreiras da imagem, mesmo
empunhamos nossas poderosas armas, também não conseguimos vencer a luta contra o
temível Senhor da Razão.
Declaramos guerra contra as gordurinhas localizadas, utilizamos instrumentos de tortura em
nós mesmas, dando choques elétricos nos malditos lipídios que tentam se instalar em
nossas curvas. Malhamos horas e horas nas academias porque queremos aparecer para o mundo
com nossos corpos perfeitos. Mas ficamos revoltadas quando os homens nos chamam de
gostosas, porque queremos que eles vejam que somos inteligentes!
Não h?dúvidas de que conseguimos conquistar nosso espaço, em várias esferas da vida
social. Nós votamos, estamos no planalto, na indústria, nas empresas, na mídia, temos
at?uma Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, que luta e articula em nosso favor
no terrível mundo masculino da política.
No trabalho, conseguimos ocupar cargos de decisão. Galgamos nosso lugar e chegamos ao
Everest do mundo corporativo. E, entre um telefonema e outro do dia-a-dia corporativo,
damos ordens aos nossos subordinados e às nossas empregadas que ficaram em casa,
corrigimos a lição de casa de nossos filhos, fazemos listas de supermercado pela
internet e pensamos no cardápio do jantar, numa rotina quase esquizofrênica, que mostra
que ainda não conseguimos solucionar o binômio dialético mãe-mulher de negócios.
Somos independentes, sim, ganhamos nosso próprio dinheiro, investimos na bolsa, fazemos
aplicações, temos orgulho de planejar nossa vida material, de conseguir estabilidade ?
nossa própria custa, mas ainda nos sentimos ofendidas se temos que dividir a conta de um
simples jantar com um homem. Somos independentes, sim, mas ainda sonhamos com um amor
shakesperiano, uma família hollywoodiana e um príncipe encantado que nos proteja dos
males do mundo e abra os vidros de azeitonas para nós.
Rechaçamos as mulheres que, por opção, escolheram ser donas-de-casa, cultivar o lar e
ver seus filhos crescerem ao invés de acompanhar as ações da bolsa subirem.
Embora nunca teremos coragem de admitir os bastidores de nossos sentimentos a quem quer
que seja, somos machistas, sim! Somos sempre as pobres vítimas nas mãos desses
inescrupulosos seres masculinos. Dizemos que os homens são todos iguais e somos incapazes
de nos desarmar de nossos preconceitos feministas e sexistas para conviver harmonicamente,
que seja, com as diferenças que existem entre nós e eles. Achamos, isso
sim, que eles têm obrigação de nos entender...como se fosse tarefa fácil!
Não se trata de defender o masculino nem o feminino. Trata-se de ampliar nossa visão
para o mundo e enxergar além da imagem refletida em nosso espelho. ?espelho, espelho
meu, se não conseguimos nem aceitar a diferença entre o masculino e o feminino, como
saberemos qual ?o nosso papel neste novo mundo da diversidade, mosaico e plural?
Apesar de todas as nossas conquistas que, como não nego, foram vitórias importantes ao
longo da história da humanidade, ainda faltam muitos obstáculos colocados por
nós mesmas a serem vencidos para chegarmos a ser Mulheres Nota 1000.
No fundo, somos todas Julietas pós-modernas. Mudaram as ambiências, vivemos num mundo
mais complexo, mudaram as circunstâncias, mas nossa luta ainda ?medieval: não nos
libertamos dos nossos cintos de castidade...
Vivemos em um novo tempo e num novo espaço. Temos acertar nosso fuso-horário com o mundo
e descobrir nosso lugar e nosso papel neste universo cibernético. Ainda temos muito,
muito a aprender...
Julietas do mundo, uni-vos! A luta continua...
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