Falar carioca em
Xangri-L?/font>
Monique
Revillion
Estava ajudando minha mãe a estender a roupa, alcançando as peças
torcidas da bacia quando a Helena chegou de bicicleta, perguntando
se eu não queria ir at?Xangri-L?pela areia, que o vento j?tinha
acalmado e nem sol tinha mais. Eu disse que estava muito vermelha
pra sair no mormaço, mas ela insistiu e falou vem logo que as férias
estão acabando e l?em Porto Alegre não tem onde a gente andar que
vai se estatelar na lomba da Lucas, lembra da Ded?toda esfolada
naquele dia em que ficou sem freio? Concordei, depois minha bici
ficaria o ano inteiro parada na garagem e eu s?querendo estar de
volta, então tinha mesmo que aproveitar.
A parte do vento era meio mentira, a Helena gostava de exagerar um
pouco ou de diminuir as coisas pra gente fazer o que ela queria, mas
não me importei porque fiquei bem feliz de estar pedalando pela
areia que nem estava mole demais. Ela queria ir at?a colônia de
férias onde tem o bar aquele que faz torrada de mortadela e vende
sorvete Kibon, eu não tinha dinheiro mas ela disse que me pagava um
picol? Fomos pedalando bem rápido, segurando no guidão na ventania
que vinha carregando uma nuvem baixa de areia ardendo nas nossas
pernas e eu pensando ainda bem que a gente veraneia no mesmo lugar.
No caminho, fiquei olhando pro mar cheio de repuxo, pra bandeira
vermelha quase sendo carregada l?de cima da casa do salva-vidas,
pra praia que não acabava nunca, e me lembrei de uma redação que
tive que fazer um dia sobre a primeira vez que eu tinha visto mar. O
problema foi que eu não lembrava de nada sobre quando tinha visto o
mar pela primeira vez e disse que devia ter me acostumado aos poucos
com ele, como nos acostumamos com as coisas que chegam devagar ou
que estão conosco h?muito tempo. A professora falou que acreditava,
mas eu vi que ela não acreditou muito porque ela disse que o mar era
uma coisa linda e grande demais pra gente se acostumar de repente, e
que eu devia ter me esforçado um pouco mais. Eu tentei, mas não
consegui lembrar de nada pra escrever e no final acabei fazendo a
redação sobre um filme da Pantera Cor-de-Rosa.
Antes de chegar tivemos que parar um pouco pra descansar e prender
de novo os cabelos que batiam com força na nossa cara e chegavam a
doer. Então, lembramos dos guris que usavam a camiseta da colônia e
ficavam indo e vindo pela praia e a gente achava que eles eram meio
bobos, porque nunca entravam na água. Combinamos de dizer pra eles
que éramos cariocas e de ficar falando chiado como a tia Lúcia, que
?minha vizinha e veio do Rio. Eu fiquei com medo de me esquecer e
na hora puxar um "r" e esquecer de puxar o outro ou de enrolar a
língua e falar carioca quando nem era preciso. Mas mesmo assim
concordamos, que era coisa fácil porque somos mesmo muito amigas nem
nunca brigamos, s?um pouquinho quando a Helena não me contou que a
Circe tinha levado meu caderno de poesias, aqueles que a gente
empresta pras amigas e cada uma escreve um verso ou uma frase pra se
guardar de recordação, logo a Circe, que nem era minha amiga, nem da
minha aula e eu nem queria nenhuma lembrança dela.
Quando largamos as bicicletas no muro, os guris estavam conversando
em volta de um guri maior, de uns quinze anos, eu acho, porque tinha
uma voz grossa e as pernas bem cabeludas, ele estava com um violão e
ia começar a cantar quando a gente chegou. Os guris disseram oi tudo
bom? e nós, oi, tudo bom, e eu fiquei nervosa pensando se tinha
alguma coisa pra encariocar naquela frasesinha tão pequena e que ia
dar tudo errado com nosso plano, mas azar, eles eram meio bobos
mesmo. Foi um alívio quando o guri peludo disse que ia jogar futebol
e ficaram s?os três do nosso tamanho, que todo dia ficavam andado
na praia pra l?e pra c? Quando eles perguntaram de onde a gente
era, eu disse do Rio de Janeiro, e eles se olharam meio que
estranhando, e eu e a Helena nos olhamos também e eu sabia que
depois que eu tinha dito aquilo a gente teria que fingir at?o fim.
A partir dali eles ficaram nos fazendo perguntas como se fosse um
interrogatório, e nós íamos respondendo sem combinar nada, sem nem
saber direito o que dizer, mas ficamos inventando o que dava na
telha e os guris pareciam estar acreditando.
Depois de um tempo eu j?estava cansada daquela conversa sem graça
de ficar s?respondendo perguntas e queria ir logo pra lanchonete
comer um Chicabom, quando um dos guris disse assim, do nada: se
vocês são cariocas j?sabem beijar na boca, carioca sabe beijar na
boca.
Me deu uma vontade de rir porque claro que a gente sabia beijar, e
nem era preciso saber nada pois a minha irm?j?tinha me dito numa
vez que eu estava treinando num travesseiro que era s?colar na boca
do guri, mais ou menos como dançar de olhos fechados e deixar a
música levar. Eu não ri e nem disse nada, mas a Helena disse que era
óbvio que a gente sabia. O guri disse que queria ver e perguntou se
nós queríamos beijar eles pra dar a prova final de que a gente era
mesmo do Rio de Janeiro. Eu acho que os outros dois ficaram
surpresos com o que ele tinha dito, porque meio que ficaram sem
jeito e olharam pro chão, e ficou um silêncio at?que eu disse que
não ia fazer aquilo s?pra provar que eu era de l?e a Helena também
disse que não queria beijar ninguém. Eles ficaram nos olhando de
lado com umas caras estranhas e antes de alguém falar mais alguma
coisa eu s?disse assim: vamos tomar sorvete, Helena, do jeito mais
carioca que eu consegui, e saímos correndo na gargalhada.
Ficamos no bar tomando sorvete sem saber ao certo se tínhamos
enganado eles e lembrando de nossas invenções de dizer que éramos
primas, morávamos em Copacabana e que nossos avós eram do sul. Eu s?
falei Copacabana porque minha mãe gosta de uma música que tem uma
parte que diz, Copacabana, princesinha do mar e eu sei que existe
esse lugar l?
Na volta, o vento soprava a favor, a gente dava uma pedalada e ia
longe e podia at?soltar as mãos e abrir os braços pra parecer que
estava voando. Mesmo assim, a Helena pediu pra parar um pouco nas
dunas antes de Atlântida. Largamos as bicicletas e sentamos l?em
cima do maior cômoro da praia, e ficamos olhando umas garças catando
tatuíras na areia, sentadas no meio de um monte daquelas florzinhas
amarelas e roxas e vendo o céu ficando rosado l?pros lados das
montanhas de Maquin? Rimos mais um pouco de nossa maluquice de se
fingir de carioca e da cara dos guris quando saímos correndo e de
repente a Helena me perguntou se eu j?sabia mesmo beijar.
Eu disse que ia saber quando chegasse a hora e que achava que essas
coisas não precisavam ser aprendidas, como tocar xilofone na aula de
música, e que era s?começar pra saber, fazendo de conta que eu
tinha pensado aquilo tudo sozinha porque fiquei com preguiça de
contar toda a história do travesseiro e da minha irm? Enquanto eu
falava, a Helena ficou me olhando muito quieta e veio devagar se
aproximando e quando vi ela tinha encostado a boca na minha e eu
fiquei lembrando aquilo de dançar de olhos fechados, sem nem achar
estranho estar começando a beijar uma guria, sentindo a respiração
dela, e a gente então se beijou de verdade. Eu s?escutava o barulho
das ondas e sabia que eu gostava mesmo demais da Helena, tanto que
estava achando aquele beijo uma coisa muito boa, e nem me importava
se naquela hora tivesse alguém passando pela praia, nem mesmo se
fossem os guris da colônia.
Depois do nosso beijo não dissemos mais nada, ficamos um tempão
sentadas l?em cima sentindo o sol aquecendo as nossas costas,
olhando pras ondas, vendo a areia correndo com o vento, a água
subindo com a mar?do fim da tarde, o céu sem nuvens se misturando
com o azul escuro do oceano l?no fundo. E eu, com uma certeza nova
de que, depois daquele dia, saberia escrever um monte de coisas
sobre a primeira vez que vi o mar.
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