Nada de muita importância
Nerino Campos
Carlos Bretón acordou escuro ainda e olhou para o relógio digital marcando quatro e
vinte e um.
Cuidadoso, chegou as cobertas para o lado, tentando com isto não acordar Marilha, e
levantou-se. Fazia frio naquela hora e Bretón procurou, apalpando nas gavetas do
armário, um casaco para se proteger. Custara a dormir naquela noite, tentando imaginar
algo de qualidade que satisfizesse o seu editor. O tempo estava passando, e nos próximos
dois dias teria de entregar o texto pronto para ser editado, e isto tolhia a sua
criatividade. Estava tão tenso que chegara a sonhar com o editor trazendo várias folhas
de papel em branco à mão, sorrindo satisfeito, como se gostando do seu fracasso. O
editor amassava, uma por uma, as folhas, e ia jogando-as para o lado, sempre errando a
lata de lixo.
Sabendo que não conseguiria dormir novamente, Bretón resolveu levantar-se e tentar, mais
uma vez, enfrentar o computador, escrevendo algo que o fizesse encontrar um caminho que o
levasse a concluir de vez o trabalho. Depois de ligar o micro, passou a olhar para a tela
em branco, como se olhasse, mordiscando a caneta, para a velha folha de papel em branco
dos áureos tempos. O cursor piscava ininterruptamente, e isto o hipnotizava. Sentindo a
mente completamente vazia, resolveu arriscar: Um homem andando, um homem conversando, com
quem? um homem vomitando, por quê? Um homem vomitava na porta da farmácia, e o
farmacêutico chegando, tentando ajudar. O cheiro era horrível e o farmacêutico,
sentindo-se na obrigação de comportar-se como um médico diante dos curiosos,
auscultava-o sem o aparelho. Qual seria a idéia de hoje? Não, um homem, não! Inventar,
inventar uma história. Sobre o quê? Sobre o amor? Sobre a inveja? Sobre um síndico
solitário, possessivo, egoísta? O relacionamento homem e mulher, não. O beijo? Um homem
apaixonado. O olhar, os lábios se tocando, o gosto, o cheiro, o sentimento. A insônia?
É, a insônia. Pensando enquanto não dorme, ou melhor, acordando assustado com o sonho.
Um relacionamento incestuoso com a mãe. O sujeito é careta e inocente. Abascal. José
Abascal. Tirei esse nome de uma agenda espanhola. Abascal gostou do sonho, a mãe era
jovem, seus cabelos também, pernas roliças, seios firmes. Abascal cobre o rosto com as
cobertas. Este gesto inconsciente é de pura vergonha, sentimento de culpa por ter sonhado
aquilo, porém, lá debaixo das
cobertas, se depara com o seu pau duro. E aí, só isso? O incesto. Abascal perde o sono,
pensa na vida, na mãe, no pai, no irmão que morrera. E daí, como acabar
com isto? Abascal procura a mãe. Tenta, mas não consegue encará-la. Sente ódio. Ela
está velha, acabada. Ele fora enganado pelo próprio sonho. Abascal só tem dezoito anos.
Sua mãe o chama para ir para a escola.
Coisa idiota!
Um sonho. O sonho se desenrola, várias coisas acontecem, e exatamente quando quem sonha
leva um tiro, a porta bate violentamente, movida pelo vento. O narrador faz suas
observações. Eu faço as observações:
Qual o poder que a gente tem, apesar de estar dormindo, de saber exatamente quando a porta
irá bater? Será que vamos sonhando vagarosamente para que o barulho do tiro coincida com
o da porta batendo? E o vento, como que ele entra nisso?
Ele também espera?
Ele sabe que a porta irá bater exatamente quando alguém disparar um tiro no sonho?
Quem sonhava não percebeu que a porta bateu exatamente no momento em que levou o tiro.
Assustado com o tiro, e percebendo o perigo devido ao barulho da porta batendo, ele pega
um revólver e sai da casa. O vizinho vem chegando do trabalho noturno e quando levanta o
braço para cumprimentá-lo, leva um tiro na cabeça. Até aí, tudo bem, e depois, para
onde vai a história? Esta vai para o lugar comum: a polícia, o arrependimento, o ódio
da viúva e dos filhos, o melodrama mexicano. Outra história: primeiro um sonho, algo que
fizesse com que uma porta ou uma janela batesse. A janela bateu. José Abascal acordou
assustado. Maria Bassas, também da agenda espanhola, temerosa, pede para que ele faça
uma vistoria na casa. Pode ser um ladrão, ela diz. Ele, impaciente, levanta-se e vai
olhar. É o vento, ele diz (narrativa direta)
É o vento.
Ela, que tinha uma parte do corpo descoberto, sentiu frio e arrepiou-se visivelmente.
Levantou-se, calçou as pantufas e foi andando em direção ao banheiro. Ele olhava para a
sua bunda. Dava três da que sentira tanto tesão ao se casar, porém, ele ainda perdia
várias noites de sono por ela.
Maria ele diz eu estava sonhando e...
Conta o sonho.
Isso já aconteceu comigo.
Isso o quê? ele pergunta.
Ela então descreve (discurso indireto?) um sonho onde cai, e quando bate no chão, acorda
com um abacate caindo no telhado. Abascal filosofa: quem sabe os acontecimentos do sonho
caminham de acordo com o barulho que se fará ouvir? Maria não entende. Se fosse um
daqueles sustos, ele diz, que a gente leva de vez em quando, tudo bem, mas o barulho da
porta batendo tem que coincidir com o tempo do sonho. Coincidir exatamente! Maria fica
pensando (digo) falando interessada no assunto (...) Ela volta do banheiro, arrastando
novamente as pantufas. Eles trepam? Deitam, cada um no seu canto e continuam a dormir?
Continuam conversando? Os dois fazem amor, e Maria sente uma espécie de convulsão
epiléptica ao gozar. Depois os dois combinam de sonhar o mesmo sonho, cada um dentro do
sonho do outro. De mãos dadas eles se concentram para que consigam isto. Eles dormem. De
manhã ela conta o seu sonho, um sonho rico de detalhes, claro, colorido. Abascal não
quer contar o seu. Mente dizendo não se lembrar. Não teve coragem de contar. Qual seria
esse sonho? Eu quero saber que sonho é esse! Abascal está em um lugar escuro, não dá
para saber se é uma rua ou um quarto. Existe um perigo iminente pairando na escuridão e
Abascal, pressentindo-o, acorda. Não era tão interessante o sonho.
Outra história: eu estou (primeira pessoa) sentado num lugar público qualquer,
observando as pessoas, tentando com isto adquirir inspiração para escrever.
Escrevo tudo o que me vem à mente. Escrevo tudo o que já escrevi até agora. Um homem se
aproxima. Sério! Ele não é fruto da imaginação. Sentou-se bem perto do banco em que
eu estou. Vários lugares estão vazios, no entanto ele sentou-se ao meu lado e me olha,
meio sério, meio rindo, como o olhar da Mona Lisa. Ele se aproxima mais e mais. Seu olhar
agora é de louco, tarado, pederasta, não sei. Agora está bem perto.
Pergunta-me se eu tenho fogo. Eu digo não. Ele diz: bonito o dia, não? eu digo não. Ele
me olha enfurecido. Levanta-se e sai. Eu o acompanho com os olhos. Ele pára um pouco
adiante, continua me olhando.
Eu começo a tremer. Não sei brigar. O homem cospe no chão. Agora vem se aproximando
novamente. Está chegando o rosto bem perto do meu ouvido. Ele me
morderá a orelha, tenho certeza. Tapo bruscamente as orelhas com as mãos, e ainda
consigo ouvi-lo dizer: gostosão!! Ele sai novamente, e eu, suando, volto a escrever.
Marilha chegou e passou a massagear as costas de Bretón. Ele parou de escrever e puxou-a
para o seu lado. Abraçou as suas pernas com a mão direita, tocando-lhe a bunda. Sua
bunda, bem delineada, continuava a mesma, desde que a conhecera. Com a mão esquerda,
Bretón desligou o micro. Marilha se espantou, perguntando se ele não salvaria o texto.
Ele respondeu que não escrevera nada de muita importância, e sentou-a no seu colo.
E-Mail: nerinoc@yahoo.com.br
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