Dia dos Namorados
Pedro Braga
Contrariando o domingo, ela levantou-se cedo.
Além de ir ao cabeleireiro, à depiladora e à manicure, faltava ainda buscar o presente:
um tênis raro, aquele que, quando foi tirado de circulação, causou ira na comunidade
jovem masculina.
O namorado ia gostar do presente; deu um trabalhão danado para achar, ainda mais no
número dele, 36, pequenino, um pé de menina o do homem da sua vida. Ela teve que
importar da Argentina, pagou caro e esperou muito, mas valeria a pena. Ah, e como valeria
a pena! Pensava ela, enquanto se olhava no grande espelho do quarto, e antevia a reação
do namorado ao rasgar sem piedade, como boa criança que era, o embrulho bonito.
Melhor embrulhada estaria ela em seu vestido novo e, talvez, quem sabe desta vez, ela
deixasse o namorado, como bom homem que era, desembrulhá-la também.
É quando a mãe bate à porta, chamando-a para sair. A menina vê seu rosto ruborizar:
uma vergonha ser surpreendida pela mãe em meio a pensamentos tão impróprios para sua
idade. Admira ainda mais uma vez seu corpo no espelho e pode jurar que ele se faz mais
belo a cada instante. Então, enfia um vestido de flores desabrochadas pela cabeça, e sai
assim, sem roupa debaixo, prenunciando no dia a ousadia da noite.
Ele acordou tarde.
Estava de bom humor e agüentou paciente as brincadeiras do pai e do irmão sobre o dia
que se iniciava - para ele, já na metade. Tomou café com leite, sob protestos veementes
da mãe, que insistia para que ele almoçasse de uma vez. Sentou-se preguiçoso na sala,
perguntando quem estava em primeiro. Responderam que era o carro vermelho-fogo do
brasileiro, assistiu o carro liderar duas voltas e rodar na terceira; ta vendo, foi
só você chegar, disseram o pai e o irmão. Ele aproveitou a deixa e levantou-se.
No quarto, olhou para o presente ao lado da cama: um perfume sofisticado. Estava orgulhoso
do pacotinho, que custou meses de economia, mais uma forcinha da mãe.
Difícil para um homem escolher uma coisa tão sofisticada e feminina, ainda mais para um
homem de pouca idade como ele. Por isso não tinha hesitado em engolir o orgulho e pedir
ajuda a meninas de antipatia tão grande quanto o bom gosto. Foi humilhante, mas
conseguiu: tinha ali, ao lado da cama desfeita, um presente perfeito.
Sorriu, abriu a porta do armário e olhou-se no espelho. Ousou achar-se bonito, mas logo
se assustou com a própria vaidade. Saiu do quarto espaventado e assistiu ao alemão
ganhar a corrida.
Ela voltou da rua, entrou no banho apressada, saiu cantarolando, colocou um vestido
novíssimo, a meia calça e só; a calcinha ia marcar justificou para si
mesma. O cabelo, que não molhou no banho, ainda exibia a beleza de quando foi cortado e
os cachos domados não esboçavam qualquer tentativa de rebelião. Estava realmente bela
quando apanhou o presente. O taxista notou (e comentou), enquanto ela se sentava devagar
para não amassar o vestido.
Ele demorou-se a fazer uma barba quase imaginária. Se queria a pele lisa ou só
justificar o uso da loção pós-barba não se sabe. Colocou a camiseta, a calça, levou
muito mais tempo do que o de costume para amarrar os cadarços. Depois escutou um pouco de
rock pesado e ficou olhando para o embrulho do presente, esperando a hora chegar.
Cansou-se de esperar, apanhou o pacote e saiu: a caminhada mataria o tempo para ele. O pai
estranhou a dispensa da carona, mas preferiu assistir ao resto do jogo a questionar a
decisão do filho.
Chegou à praça, feliz. Logo viu seu homem que balançava uma sacola, encostado no
coreto. Ela andou com passos largos e vestido esvoaçante, e o abraçou apaixonadamente. O
namorado estendeu-lhe a sacola de marca famosa e assistiu a ela abrir o plástico e rasgar
o embrulho para encontrar uma blusinha, dois números maior, embaixo do papel de seda.
A moça falou que se não servir..., disse o namorado, e sugeriu que se
apressassem, para não perderem o filme. Seu embrulho abriria depois.
Sentado na fonte, ele já esperava há meia hora quando a namorada saltou do ônibus.
Vinha chacoalhando uma grande sacola e parecia um pouco aborrecida. O presente chegou
alguns segundos antes dela. Ele o abriu, rasgando o papel, e viu aparecer uma camiseta
toda estampada, certamente apertada e que lhe causou um certo desconforto visual. É
daquela loja nova, mas se não gostou pode trocar, ele ouviu e colocou um sorriso
dolorido no rosto, vendo sua amada descolar, cuidadosamente, a fita adesiva da caixinha e
abri-la só o suficiente para o rabo do olho poder entrar.
Ah, brigado, o perfume que eu queria, a namorada disse, e puxando a mão dele:
agora vamos que se não a gente perde a sessão.
Tão baixo andavam os olhos dos dois, que acabaram por se cruzar em frente ao cartaz do
disputado filme. Em poucos segundos perderam-se, na confusão da entrada, na vergonha do
desejo ou na inadequação do dia, mas foi tempo suficiente para fazê-los passar o filme
a perseguir vultos, na esperança de que o rosto do outro se tornasse evidente no
tremeluzeio da tela.
Não se viram mais.
Tivessem oitenta anos ou fossem poetas românticos, teriam se matado. Mas eram jovens de
prosa; foram para casa, guardaram os presentes e escreveram o mesmo conto, sob luzes
diferentes.
E-Mail: pedrobhscsp@yahoo.com.br
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