O enforcado
Roberto Márcio Pimenta
Meninos nus mergulhavam no rio, enquanto as lavadeiras, com suas saias amarradas entre as
pernas, repetiam as mesmas canções de séculos passados e, naquele instante, não
percebiam o cheiro que o vento trazia . Então, a mais sensível entre elas, interrompeu a
cantiga e a lavação e disse:
Há um cheiro de perfume no ar. Todas fizeram silêncio e concordaram
balançando a cabeça e dizendo em coro:
Tem sim!
E deve ser de morte, pois o odor é de rosas disse a mais velha
delas.
E temendo que o fenômeno propagasse em suas mentes, chamaram seus homens para que
elucidassem o enigma do cheiro, o que, para eles não passaria de uma simples
averiguação de suas alucinações.
Em número de sete, armados de facões, sobre pernas decisivas, entraram pela mata e no
esplendor da tarde, aos olhos dos homens de fé daquele lugar, diante da imagem
dependurada na corda, balançando , com uma sombra no fundo duas vezes maior do que o
corpo, prostraram de joelhos. Era um enforcado.
Fizeram o sinal da cruz e chamaram as pessoas daquela aldeia.
Levaram os anciões em fila para que tocassem no morto e um deles, o mais frágil, disse:
Não se encostem ao corpo! Ele quis enganar a paixão. Deve ter morrido por
um grande amor, porque somente na morte é que se compreende um grande amor. ao que
o outro respondeu , com voz rouca e fraca, franzindo a testa e passando as mãos entre os
cabelos brancos:
Não é isto! Ele não levou um coice da mula do amor. Simplesmente a vida
estava de tocaia e ele caiu na armadilha . Deve ter sido assaltado.
A mulher gorda que amamentava uma criança no colo, com a outra segurando a barra da sua
saia, respondeu:
Olhem suas botas que o chão rejeita! Observem suas roupas, o anel na mão
esquerda, seus longos cabelos aparados na ponta, seu físico de grande guerreiro... só
pode ter sido alguém que morreu por uma grande causa, o que foi motivo de alguém
mais distante do local completar:
Pela nossa liberdade! e todos aplaudiram dizendo Foi sim.
Uma criança tímida, com o polegar na boca, acompanhada de um cão, quis tocar o
cadáver, mas impediram para não profanar o santo dependurado na corda. O cão latiu e o
vento balançou o morto, fazendo com que as pessoas se afastassem para não tocar no
corpo.
A mais beata das lavadeiras desfez o nó da saia, fechou a mão, persignou-se com o
polegar, aproximou-se e, logo após, beijou suas botas.
Retiram-no da forca e deitaram-no sobre o solo. Perceberam, assim, que era um homem alto,
com catadura da serenidade da paz, olhos verdes que avistaram guerras santas nas quais
defendeu fracos e inocentes. Levaram o corpo, choraram pela sua morte e o sepultaram no
chão da capela.
Meses depois os espanhóis chegaram à aldeia procurando o corpo de um homem que havia
sido executado na floresta: era um bandido tão tenebroso que resolveram executá-lo ali
mesmo temendo que a própria sorte desviasse o curso da sua execução no cadafalso.
E-Mail: robertomarciopimenta@yahoo.com.br
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