Depois, pela
manhã
Raphael Vidal
Chegava sempre sorrindo. Cigarro nos cantos da boca. Parecia que não
pisava no chão, flutuava silencioso. Mas marcava presença. Chapéu
coco na cabeça, tombado para o lado esquerdo, sempre o esquerdo. E
aquele bigodinho? Serrado, feito antes do nariz. Bonito de se ver.
Era pobre, se dizia. E o que importa? Sua vida era sem exageros.
Parava no balcão.
Bacaninha, uma média.
Depois ia gingado, suave, ritmado. No compasso até a bilhar. Entre
goles de quentura segurava o taco, com a testa fria, olhando sempre
o redor. Mostrava intimidade com o negócio. Bom negócio.
Qual é a pose?
Era um astro. Dedicação exclusiva ao tapete verde da glória. Mas não
tinha fãs. Quem o via sempre chegava a invejá-lo. E lá seguia o
ex-estiva, agora corpo mole, bagunçando o coreto, mostrando rebeldia
nos ângulos que nem Arquimedes supunha existir. Sua elegância não
guardava só para as damas da sociedade, era também sugerida aos
determinados que encontrava pela frente.
Dê o nome, por gentileza...
Depois, grana no bolso, pouca, pois que muita não prestava ao seu
desacostume com extravagâncias, seguia seu rumo. Batucava na
caixa-de-fósforos um samba destes de outrora. Sua calça balançava.
Lugar de beber não era onde ganhava dinheiro. Como dizia: bebe-se
para perder e lá eu ganho. Parava noutra esquina dessas. Olhava o
ambiente. Segurava uma nota no seu batuque.
Dá uma bagaceira.
Tomava em goles pequenos, maliciosos, saboreados, metidos a
entendedor. Esperava a roda começar. Não tinha pressa. Puxavam logo
uma cadeira pra ele, que, negando a idade, ficava em pé. Era ainda
homem forte. Precisava só de um tira-gosto. Pedia o torresmo que
desse já sabia a procedência. Era esperto. Metia lá pelas tantas uma
boa e gelada cerveja preta. Ficava acordado, então, até amanhecer,
cantando, melodia triste, abafante, parecia que ia diminuindo,
depois levantava a voz no refrão como um martírio, sua voz
melancólica rompia os desejos de alegria de qualquer roda, entravam
em profunda concentração, o samba subia a qualidade, merecia
interesse. Dizia que só cantava para a vida, que ela sendo como é...
— e sempre antes de terminar a fala pedia outra bagaceira, não
terminando o assunto. Vivido, sabia levar o rumo do samba, puxava
Cartola.
Tive sim, outro grande amor antes do teu, tive sim...
Na volta andavam quase todos juntos. Separavam-se quando iam
chegando em suas casas. O Sol raiando, algumas portas fechando,
outras abrindo. Não sabia no que pensava. Temia pensar. Ficava
olhando, admirado. Não como se fosse o último dia, mas o primeiro.
Estranhava os lugares por onde sempre passara. Descobria novos
buracos, mendigos, pontos... Até que chegava, sempre com o pão que
providenciava entre uma olhada e outra. Abria o trinco, um silêncio
daqueles da manhã reinava. Como era diferente da noite, do samba, da
bilhar. Colocava o pão na mesa, ao lado o dinheiro que restara.
Tirava o chapéu, o paletó e cambaleava até a cozinha onde tirava os
sapatos sentado na cadeira. Fumava um último cigarro para lembrar
com calma das coisas que se passara naquela noite, nas outras, nas
muitas outras. Depois bebia um pouco d'água e exausto deitava na
cama. Ligava o rádio baixinho.
São seis horas e trinta minutos, o Sol lá fora convida! Mais um dia
começa! É hora de acordar...
Abria mais um sorriso, bobo, e começava a dormir.
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