
Simone K. Oliveira é
mineira de Juiz de Fora, tem 28 anos e leciona literatura naquela cidade. Já participou e
venceu alguns concursos literários e está cuidando da publicação de seu primeiro
livro, "Na pele das penas", que, como diz a autora, conterá "muita prosa
poética". |
Decifra-me ou devoro-te
Simone K. Oliveira
A primeira vez que devorei Luciano fazia uma tarde de sol. De repente caiu uma chuva
grossa, dessas que doem na pele e não vimos o arco-íris porque a cortina da janela da
sala estava fechada. Naquela época Luciano era só um menino franzino mas carregava na
pélvis uma força motriz que me deixava os músculos doloridos e a virilha dormente.
Muito tempo se passou desde a tarde do arco-íris e a noite em que ele viu passar um
cometa no céu da minha boca.
Nessa época eu morava em Belo Horizonte, trabalhava numa livraria e alimentava o sonho de
ter a minha própria casa de chá-livraria-e-locadora. Eu estava agachada, atendendo um
rapaz argentino quando senti que a loja estava tomada de um cheiro quente e levemente
adocicado. Fechei os olhos e levantei-me suavemente, sem saber ao certo se queria ou não
vê-lo do outro lado do balcão.
Um par de olhos verdes, ancorados em grossas sobrancelhas e protegidos por lentes de
resina provocou um buraco negro no meu peito e todo meu ar faltou. Meu corpo encolheu e
meu esqueleto delgado era a única coisa concreta na qual eu podia me apoiar. O mundo todo
se dissolveu, exceto o homem a minha frente e o volume 4 das obras completas do Borges que
estava na minha mão. O rapaz argentino sussurrou palavras incompreensíveis e girou nos
calcanhares em direção à porta que segundos depois fechou-se num estrondo. Nesse
instante o telefone tocou e o homem de olhos verdes começou a esvaecer até que sumiu,
por inteiro, enquanto eu repetia numa espécie de dialeto, o nome da loja para alguém do
outro lado da linha. Quando abri os olhos, Luciano era um único e largo sorriso.
Nunca sabia ao certo o que se passava comigo durante os intermináveis segundos que
ficávamos nos olhando, sem dizer uma única palavra. Somente depois que ele sorria, eu me
lembrava que era eu e não ele, a esfinge. E retomava o controle da situação.
Ele estava ali para me convidar para um café e como eu sabia que ele adorava croissants,
deixei a mesa posta quando saí de casa e foi depois que ele comeu o último pedaço que
eu comecei a devorá-lo de novo.
Meu menino era fotógrafo e tinha os olhos mais sensíveis que eu já conheci. Foi por
isso que ele viu o cometa, mesmo comigo tentando escondê-lo com miolo de pão e leite
desnatado. Mais tarde ele me diria que seria lindo se eu tivesse deixado que ele visse
também a Pampulha que refletia na minha língua.
Cada vez que dormíamos juntos um leve tremor percorria a casa, a rua, o bairro e um
perfume seco, de madeira, penetrava nos narinas de BH.
Luciano abria meus braços e pernas e se enroscava em meu corpo como uma planta rasteira e
nós podíamos permanecer assim durante horas a fio. E eu permitia tudo. Nunca lhe neguei
um único suspiro ou uma gota de suor. Cada fibra do meu corpo pertencia aos seus desejos.
Pelo menos, até o momento em que eu sentia fome. Porque daí em diante, era eu quem
controlava a situação.
Cada vez que eu o devorava, escolhia uma parte do seu corpo. Quando ele saiu do meu
apartamento, estava sem a outra orelha. Ele havia deixado seu cabelo crescer para
disfarçar a falta da primeira. Eu fiquei com pena e não quis retirar uma parte do corpo
que lhe causasse algum transtorno. Por isso escolhi a orelha irmã.
Vivemos assim durante meses. Ele entrava na loja e eu sentia seu cheiro de incenso. Os
clientes saíam e nós em seguida. Íamos a algum lugar para comer e mais tarde eu o
devorava no meu apartamento. Depois que sorvi-lhe as pernas ele morou duas semanas comigo.
Nunca tive coragem de devorar seus olhos. Meu menino tinha os olhos mais sensíveis que
já conheci. Guardei-os em globos de vidro e fiz dois pesos de papel. E quando sinto
saudades dele, abro a boca e deixo que os glóbulos verdes viagem seguros no cometa que
passa no céu da minha boca.
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