
Vário do Andarai, carioca, de classe média,
brincou de boleiro, brincou de músico, brincou de comerciante, brincou
de analista de sistemas, brincou de vagabundo, hoje brinca de taxista.
Ganhador do prêmio Jabuti (2º lugar - Contos e Crônicas) com "A máquina
de revelar destinos não cumpridos", de onde extraímos o texto ao lado.
O livro é ilustrado por Guto Lins, premiado designer, autor e ilustrador de obras
para crianças e jovens. |
Vodka
Vário do Andarai
Às vezes cobro o
valor da corrida bem abaixo do que deu. Ou nem cobro nada bem
abaixo do que deu. Ou nem cobro nada.
De madrugada os ônibus rareiam, e é muito comum - muito comum -
pegar família humilde plantada há horas num ponto ermo e escuro de
alguma rua valha-me-a-sorte. Eu imagino o cálculo que o cara faz
pra estender a mão e me chamar. Sei da angústia dos poucos reais a
mais da diferença entre o que ele gastaria nas passagens do ônibus
e o que vai pagar pela minha corrida.
São às vezes cinco, às vezes seis. Na verdade eu nem posso levar
cinco pessoas, porque, em caso de acidente, posso me encalacrar.
Mas eu levo. Quero mais é que que-se... E levo sabendo que o
destino é sempre pra dentro do olho da miséria.
É bem verdade que quando é pra subir morro, eu me recuso a ir lá
nas grimpas. Explico o real motivo e os deixo em algum lugar
cômodo pra eles e bom pra mim. E o real motivo não é pela
segurança, porque não tenho medo de subir morro. 0 real motivo é
que a gente vai subindo e a coisa vai se estreitando: a rua vira
viela, a viela vira beco e o beco vira corredor. Chega ao ponto de
a gente mal conseguir abrir a porta do carro. E onde manobrar? Não
tem lugar. Tem que se descer de ré, no escuro, às vezes sob chuva,
enxergando nada atrás, arriscando atropelar alguém.
Mas como se manter
indiferente o tempo todo, a vida toda? A família pobre — você vê
que é pobre —, casal e crianças, acenando, num vazio de tudo e
querendo pagar o que não pode pra poder chegar em casa. Como se
manter à parte sabendo que aquela mixaria dá pra três, quatro
quilos de feijão.
E entram no carro
quase obsequiosos, avisando de antemão que não vai ser preciso
entrar na comunidade, e acaba que por si sós pedem pra ficar no
tal lugar cômodo pra mime pra eles. E às vezes, pasmem, olham o
taxímetro, contam o valor e querem deixar gorjeta. O absurdo me
soa tão grande que chega a dar vontade de ser grosseiro:
— Amigo, pega essa
gorjeta, compra um formicida e coloca na garrafa térmica de café
do seu patrão!
Que mundo cão do
cacete é esse? Eu sei que tem miséria muito mais aflitiva pelo
mundo afora, que há lugares por aí em que o homem degradado atinge
o status de barata. Mas minha África é aqui:
— Quanto deu aí?
— 7,00.
— 7,00? Mas tá marcando 21,00 aí.
— Mas hoje é 7,00 —
respondo vexado, sabendo que meu gesto magnânimo (a magnanimidade
de um verme patético) é uma humilhação pra ele.
Dá vontade de receber os 21,00, beber 7,00 de cachaça e dar os
14,00 pra algum estorvo miserável no primeiro sinal que fechar pra
ele tomar também de cachaça.
Então é isso? A
vida aqui está destinada a ser sempre um romance dostoievskiano em
que todo mundo se avilta?
País ordinário.
Cidade ordinária. Mundo ordinário. Vida precária.
E-MAIL:
deddalus@globo.com
http://www.variodoandarai.com.br
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